24 de julho de 2013

LIVRO ILUSTRADO APRESENTA OS HETERÔNIMOS DE FERNANDO PESSOA COM CARTA ESCRITA PELO AUTOR PORTUGUÊS


Acaba de chegar às livrarias o livro Eu, Fernando Pessoa. Com roteiro de Susana Ventura e ilustrações de Eloar Guazzelli, a obra usa o formato dos quadrinhos, uma carta e poemas do autor português para explicar a origem dos heterônimos, figuras em que Pessoa se desdobrava ao escrever e que marcaram sua criação literária pela sinceridade com que os considerava autores reais. 

A multiplicidade do poeta foi inspiração para Guazzelli alterar o estilo dos desenhos conforme a história se desenrola. Em entrevista por telefone, concedida de Brasília, onde estava de passagem, Guazzelli, que mora em São Paulo, falou sobre a relação de Florianópolis — onde passa os verões — com o livro e comentou a dedicatória para sua mãe, que lhe apresentou Fernando Pessoa e morreu há pouco tempo.

Você sempre gostou de poesia?

Sim. Apesar de achar que é perigosa porque tem muita poesia ruim (risos). Ela é a coisa mais sublime que existe, mas muita gente não tem esse respeito e se permite fazer coisas ruins. Eu li muito na juventude, sou mais ligado à prosa, mas tenho uma ligação forte com a poesia, em particular com o Fernando Pessoa. 

Este é um livro muito emotivo para mim, ele é bastante aquático, e muitos desenhos fiz aí em Florianópolis, na minha casa no Ribeirão da Ilha. O ambiente local foi sendo incorporado nas imagens. 

Além disso, a obra é dedicada à minha mãe, que morreu há pouco tempo. Ela gostava muito de literatura e me apresentou ao Pessoa. Foram meus pais que me introduziram nesse mundo. Me envolvi tanto com o projeto que estou fazendo um curta sobre o Pessoa de 11 minutos.

Como foi seu primeiro contato com ele?

Engraçado você perguntar assim porque parece que é uma amizade que tenho com ele — e é isso mesmo. Os autores que são importantes na minha vida tenho como amigos, até para não mistificá-los demais. Na minha biblioteca, tenho todos os livros do Fernando Pessoa. Tive momentos na minha vida em que me aproximei dele, mas agora, aos 50 anos, me sinto mais próximo ainda. Lancei há dois anos um livro sobre ele que acabei emendando nesse segundo. 

Sem renegar o primeiro, mas foi o atual que me permitiu realmente dizer as coisas que queria. Eu li uma biografia muito bonita, com imagens, e isso me deu a chance de aprofundar minha abordagem. A vida dele foi fantástica, apesar de não ter sido aventureira. 

Ele morou na África e depois praticamente a vida inteira em Lisboa, mas era muito rico interiormente. Fez propagandas, uma delas ficou famosa porque foi polêmica, e também fazia mapas astrais - era uma autoridade nesse setor. Fazia mapa inclusive de seus heterônimos. Foi muito legal fazer essa pesquisa.

No livro dá para perceber que você não traduziu as metáforas do Pessoa em imagens, mas criou outras em cima das dele.

Espero que sim. Se não fiz isso, fracassei (risos). A redundância é um perigo fatal para transposições também para o cinema. Toda tradução de uma linguagem para outra tem esse risco. Não é função do ilustrador, seja de história em quadrinhos ou gráfico, repetir o que o texto diz. Para que repetir? Não tem função. A gente tem que trabalhar nas entrelinhas, pensar nas imagens que aquilo desperta. 

No meu caso, ler o poema e trabalhar minha própria poesia em cima. Que imagens esse poema me desperta? Ou que imagens quero projetar para os outros a partir disso? Terminei o livro contente e isso é muito difícil, então acredito que tive sucesso nessa tradução. Em função dos heterônimos, o estilo dos desenhos varia. 

Pessoa é muitas pessoas, é uma multidão. Isso me contaminou muito. O resultado final é quase o que queria quando idealizei o projeto. Fiz 12 páginas e, se um dia eu fizer 70 com essa qualidade, paro de trabalhar e me dou por satisfeito.

Eu, Fernando Pessoa: Editora Petrópolis - Roteiro de Susana Ventura - Ilustrações de Eloar Guazzelli - 72 págs - Preço médio: R$ 39

Confira abaixo o Poema em Linha Reta, o favorito de Pessoa escolhido por Eloar Guazzelli. Ele foi escrito pelo heterônimo Álvaro de Campos.

Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Extraído do sítio Portal Vitrine

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