29 de outubro de 2012

ENTREVISTA COM O BIÓGRAFO DE GRACILIANO RAMOS, DÊNIS DE MORAES

O POVO - Como começou sua relação com a obra de Graciliano Ramos? O que mais lhe chamava (chama) atenção na literatura dele? A partir de que momento surgiu o interesse do sr. em escrever uma biografia do escritor? 

Dênis de Moraes - Sou filho de um professor de literatura brasileira que me iniciou e me contagiou com sua admiração incondicional pela obra de Graciliano Ramos. Na adolescência descobri Vidas secas. Anos depois, no vestibular de 1972, São Bernardo era uma dos livros obrigatórios. Éramos inconformados com a ditadura militar e a revelação do universo opressivo e tirânico do protagonista Paulo Honório, uma espécie de senhor feudal, foi um clarão na consciência a favor dos oprimidos. A ligação definitiva com Graciliano veio com a leitura de Memórias do cárcere, uma das obras fundamentais para a compreensão da barbárie, a partir de uma magistral reconstituição ficcional das condições desumanas nas prisões da ditadura de Getúlio Vargas. Sempre achei que o escritor Graciliano é satisfatoriamente conhecido pelos leitores e pela crítica literária, mas o homem que se ocultava por trás dele merecia ser revelado em suas múltiplas dimensões, ainda mais porque em 60 anos viveu, na verdade, 120, tantas foram as aventuras e desventuras que atravessaram sua jornada. Daí a ideia da biografia.

O POVO - Como foi a pesquisa, quanto tempo levou a escrita e a publicação? Quais dificuldades o sr. teve? 

Dênis de Moraes - A pesquisa durou mais de dois anos, envolvendo dezenas de entrevistas com amigos, familiares e contemporâneos (hoje isso seria impossível, pois, infelizmente, muitos deles já não está mais entre nós), consultas a arquivos públicos e privados no Rio de Janeiro, São Paulo e Maceió, amplo estudo bibliográfico de e sobre Graciliano, releituras de sua obra e buscas em coleções de jornais nos quais colaborou. Há 20 anos não havia internet e nem arquivos multimídias, como os agora existentes; as limitações eram bem maiores para acessar materiais documentais. Uma das dificuldades do gênero biográfico é como lidar com versões conflitantes apresentadas pelas fontes. Isso exige exaustivas verificações para se chegar à veracidade. No que concerne a Graciliano, devo dizer que encontrei comovente solidariedade por parte de sua família e das testemunhas de sua trajetória. Não apenas obtive depoimentos esclarecedores, como também fotos, cartas, bilhetes e livros que foram de extrema valia.

O POVO - E agora, vinte anos depois, como veio a iniciativa do relançamento? Além de trechos de entrevistas que Graciliano concedeu, que outros inéditos foram acrescentados à biografia? O sr. já tinha esse material inédito ou precisou voltar à pesquisa? 

Dênis de Moraes - Sim, houve acréscimos relevantes à nova edição de O velho Graça, obtidos ao longo dos últimos 20 anos em que voltei a pesquisar Graciliano. Sem falar no caderno iconográfico com fotos e ilustrações, várias delas inéditas. Destaco dois acréscimos que me parecem significativos. Consegui localizar as cinco entrevistas mais expressivas que Graciliano concedeu ao longo da vida. Ele era esquivo e costumava driblar o assédio de repórteres dizendo que não tinha nada de útil a dizer... Os jornalistas Francisco de Assis Barbosa, Homero Senna, Newton Rodrigues, João Condé e Joel Silveira, durante a década de 1940, conseguiram a proeza de dobrá-lo e obtiveram declarações interessantes sobre o seu processo de criação (reescrevia obsessivamente os textos e cortava o que chamava de “gorduras”, com uma régua guiando seu lápis implacável) e o papel do escritor na sociedade (ressaltava que a literatura deve preservar sua autonomia frente à política, sem deixar de refleti-la). Outro acréscimo foi a carta que Graciliano chegou a redigir e jamais enviou ao então presidente Getúlio Vargas, em 1938. Um desabafo sobre as dificuldades enfrentadas durante e depois do período da injusta prisão (entre 3 de março de 1936 e 10 de janeiro de 1937), sem processo ou culpa formada. A carta, de uma lauda, era respeitosa, ainda que com algumas ironias, como, por exemplo, ao qualificar Vargas como “meu colega de profissão”, numa alusão ao ingresso do ditador na Academia Brasileira de Letras com apenas um livro de discursos.... 

O POVO - Uma das novidades da edição 2012 é a entrevista que o jornalista Homero Senna conseguiu com Graciliano, que era avesso a qualquer tipo de exposição. Várias vezes, durante a conversa, percebe-se o desconforto, a pouca vontade do autor de Vidas Secas em conversar sobre a própria história. Gostaria que o sr. contasse um pouco mais acerca dessa (da) entrevista (a Homero Senna), como foi conseguida e por que Graciliano, embora conhecesse o meio jornalístico de perto, tinha tanta reserva com ele. 

Dênis de Moraes - Realmente foi muito interessante a circunstância em que Homero Senna obteve a entrevista. Ele procurou duas vezes por Graciliano na Livraria José Olympio, no Rio de Janeiro. Nem conseguiu se aproximar, pois Graciliano estava entretido na roda literária de fim de tarde na livraria, que reunia, entre outros, José Lins do Rego, Manuel Bandeira e Rachel de Queiroz. Na terceira tentativa, Graciliano relutou em falar, mas chamou Homero para uma caminhada pelo centro da cidade. Respondeu evasivamente às primeiras perguntas, até que decidiu parar em dois bares, em distâncias de menos de 500 metros. Tomou duas doses de cachaça, sua bebida favorita, e então soltou a língua para o repórter... O texto de Homero Senna nos revela, por exemplo, que Graciliano era leitor sistemático de dicionários, com o propósito de aumentar sempre seu repertório de palavras e expressões. 

O POVO - Graciliano disse, na mesma entrevista a Homero Senna, que tem um pouco de cada um de seus personagens e, por isso, seus livros de ficção guardavam muito de autobiográfico. É possível definir a literatura do Graciliano a partir da vida dele?

Dênis de Moraes - A relação entre vida e obra numa biografia sempre implica a tentação biografista, ou seja, explicar a obra de um autor por suas experiências vividas. A vida de Graciliano foi repleta de circunstâncias que incidiram, sem dúvida, em sua criação artística (a infância atormentada no interior do Nordeste atrasado, a atribulada atividade política, o infortúnio da prisão sem culpa, a batalha para sobreviver em meio à consagração literária etc.). Mas, ao mesmo tempo, foram tantas as curvas e zigue-zagues no percurso que o risco do biografismo se diluiu. Muitos fatos por ele vivenciados extrapolaram o mundo pessoal e se relacionaram diretamente aos contextos históricos, o que exigia do biógrafo tomar em conta fatores mais amplos, de natureza social e política.

O POVO - Graciliano era um feroz crítico da própria obra. Na citada entrevista a Homero Senna, ele disse que seu trabalho literário nada valia, que "a rigor, até, já desapareceu". No entanto, essa obra parece se firmar cada vez mais entre os grandes feitos da literatura brasileira. A que o sr. atribui essa força crescente da obra de Graciliano Ramos? 

Dênis de Moraes - Era um feroz crítico da própria obra da boca para fora. Graciliano tinha plena consciência de seu valor. Mas dissimulava os sentimentos, como sertanejo tímido e desconfiado que era. Ocultava-se na timidez e no excesso de autocobranças, que nada mais eram senão a evidência de sua férrea determinação de aprimorar-se e superar-se como escritor. Penso que poucos escritores de sua geração demonstraram tanta consciência sobre o papel social de um homem de letras quanto Graciliano. Atribuo a dois fatores principais a força crescente de sua obra: ao seu talento literário – era capaz de retratar esplendidamente situações e sentimentos com incrível economia de palavras e imagens – e ao compromisso inabalável com a condição humana, sempre solidário aos excluídos e aos que sofrem com as explorações de qualquer natureza. 

O POVO - A respeito da relação de Graciliano com a política. Ele chegou a ser prefeito de Palmeira dos Índios, foi comunista e sempre fez críticas à política brasileira, às relações de poder presentes nessa política nacional. Pergunto: como era o Graciliano Ramos administrador público? 

Dênis de Moraes - Foi um prefeito revolucionário, ético, honesto, empreendedor, que deu prioridade às áreas periféricas e pobres de Palmeira dos Índios. Pôs fim à corrupção e ao clientelismo na Prefeitura, impondo rígido controle sobre as finanças e os gastos públicos. Cumpriu à risca o Código de Posturas, alterando para muito melhor a fisionomia urbana. Os comerciantes que sujavam ou ocupavam irregularmente as calçadas tiveram que se enquadrar. Os que ousavam desrespeitar o Código eram advertidos. Na reincidência, multados. Até Sebastião Ramos, pai de Graciliano, foi multado por ter a sua loja de tecidos descumprido as normas. “Prefeito não tem pai, a lei vale para todos”, disse-lhe o filho. Ele abriu estradas, recuperou escolas públicas. Tudo isso em apenas dois anos de mandato (em 1930 aceitou convite do então governador de Alagoas para assumir a presidência da Imprensa Oficial do Estado). 

O POVO - Ainda sobre a política na vida de Graciliano, gostaria que o sr. contasse um pouco da relação de Graciliano com Getúlio Vargas e como isso é abordado na biografia. 

Dênis de Moraes - Graciliano nunca perdoou Getúlio Vargas como responsável máximo pelo regime que o encarcerou de modo arbitrário, juntamente com outros tantos intelectuais, sindicalistas e políticos que se opunham à escalada repressiva que se seguiu à malsucedida insurreição comunista de 1935. Graciliano odiava o Estado Novo, definido por ele como “uma cachorrada”. Além de ter escrito uma carta, não postada, a Vargas reclamando dos maus-tratos sofridos na cadeia, é eloquente o único encontro presencial havido entre Graciliano e Getúlio. Em fins da década de 1930, o Rio de Janeiro era uma cidade tranquila e segura, as pessoas tinham o hábito de sair após o jantar para dar uma volta. Vargas costumava fazer isso no quarteirão do Palácio do Catete, sem seguranças. Graciliano morava numa pensão da Rua Correa Dutra, a poucas quadras do Palácio. Numa noite, os dois quase se esbarraram. Vargas reconheceu o escritor e o cumprimentou de passagem: “Boa noite.” Graciliano, que também notara a aproximação do presidente, passou por ele sem retribuir a saudação. Foi a vingança do silêncio da vítima (o ex-preso político) contra seu algoz (o ditador em cujo governo o escritor foi preso injustamente como “subversivo”). 

O POVO - Pela escrita, pela maneira de ver o mundo, de se reportar às pessoas, Graciliano parece ter sido um homem seco, contido, pessimista. Mas o sr. sustenta no livro que ele era um homem romântico, terno. Que passagens da vida de Graciliano o sr. pode destacar que demonstram essas características?

Dênis de Moraes - A chamada “história oficial” apresentava Graciliano como intratável, ríspido, fechado em si mesmo. O meu livro propõe a verdade em outros termos. Os depoimentos que obtive de amigos, familiares e contemporâneos foram unânimes em desvelar um outro Graciliano. De fato, era um homem contido, avesso a externar suas emoções, às vezes irritadiço e ranzinza. Mas aos que privavam de sua intimidade ou precisavam de sua ajuda para causas justas, ele era solidário, paciente, compreensivo e até bem-humorado. Era romântico a seu jeito. Para fazer um mimo na esposa, Heloísa, levava-lhe frequentemente maçãs, a fruta predileta dela. E que dizer da acolhida fraterna, por Graciliano, de jovens escritores, como Guilherme Figueiredo e Alina Paim, que buscavam seus conselhos para prosseguir na literatura? Ele revisava os originais e ainda lhes ensinava certos segredos da escrita.

O POVO – Por fim, se Graciliano fosse vivo, o que sr. acha que ele diria da literatura brasileira hoje?

Dênis de Moraes - Talvez dissesse que está na hora de reviver o realismo crítico, mais compromissado socialmente e capaz de se sensibilizar pelo destino do homem brasileiro, com suas aspirações, sofrimentos, inquietações e experiências. Com as exceções que merecem respeito e consideração, a literatura atual está comportada e resignada demais. Graciliano repetiria que é preciso torná-la mais instigante e crítica, porque, como ele ressaltava, “a arma do escritor é o lápis”.

Extraído do sítio O Povo Online

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