1 de setembro de 2012

AMAR AMADO - Carlos Picassinos

Lusofonia assinalou em Agosto cem anos de nascimento do autor de “Gabriela, Cravo e Canela”.

Não ganhou o Nobel da Literatura. Nunca ganharia. Porquê? “O Nobel será de Saramago”, prognosticou, um dia, o autor de uma das mais admiradas e lidas obras da língua portuguesa. Jorge Amado, nascido a 10 de Agosto, de 1912 nessa terra mágica da Baía, Brasil, na fazenda de Ferradas em Itabuna, filho de coronel, está a ser homenageado pela lusofonia ao longo deste mês de Agosto através de uma série de iniciativas que inclui um extenso programa de leituras, conferências, encontros, publicações e concertos. A memória é mais do que justa. Afinal, não foi Amado, o primeiro a redescobrir o Brasil? E não foi, por Amado, que os portugueses redescobriram o Brasil?

Provavelmente, são observações ligeiramente exageradas mas ninguém rejeita que Jorge Amado terá sido, seguramente, uma das vozes mais cristalinas a descrever, em cumplicidade, a tragédia das gentes mais humildes e o proletário de excluídos que povoava a Baía do século passado.

Se há uma linha para entender Amado arruma-se algures entre as várias fases que os estudiosos e académicos identificam na sua obra: uma linha que o ancora no realismo socialista ou, menos panfletário, na batalha pelos últimos, pelos mais pobres. Daí, em parte, as polémicas em que o seu nome se viu envolvido nas batalhas entre presencistas e neo-realistas, arrastando o próprio Álvaro Cunhal, secretário geral do PCP, acerca do papel dos intelectuais e da sua capacidade de denunciar as injustiças e os atropelos deste mundo. Certo que a sua vinculação ao Partido Comunista e a celebração que as suas obras sempre mereceram junto da entourage pró-soviética lhe valeram tantos encómios quantos engulhos.

Em Portugal, – e por extensão às colónias africanas – ao longo do século, a recepção da sua obra, esteve sujeita à censura e à exclusão do regime fascista. Mas não só. Até cerca de 1950, a sua obra era ainda desconhecida entre a intelectualidade de esquerda, em Portugal. O autor de “País do Carnaval”, a sua obra inaugural, do início da década de 1930, só adquiriu visibilidade graças a Ferreira de Castro, autor desse visceral romance “A Selva”.

A eloquência de “Cacau”

É o próprio Ferreira de Castro que relata o modo como Amado lhe chegou às mãos. Por exemplo, no prefácio à primeira edição de “Gabriela, Cravo e Canela” publicada, em Portugal, em 1965 – graças à intervenção do seu editor (dos Livros Europa América) Francisco Lyon de Castro, junto de figuras do regime – a descrição de Ferreira de Castro, em 1960, ilustra bem a impressão que os primeiros escritos lhe deixaram. “Há quase trinta anos, quando com parte das cinzas da primeira grande guerra ainda empapadas de sangue se voltava a recear um conflito mundial, esteve em Lisboa uma embaixada de estudantes brasileiros que muitas noites subiam a avenida da Liberdade, discreteando, ao sabor do passo vagaroso, também os problemas dos homens e do seu mundo. […] De volta ao Rio, um dos membros desse grupo juvenil, já tão preocupado com os aspectos graves da vida, enviou-me, como última revelação da sua terra, um romance chamado “Cacau”, escrito por Jorge Amado – um nome que nada me dizia. […] Um dia li-o”, recordava. “Era um romance sobre as plantações de cacau na Baía, que se apresentava desde os primeiros capítulos com a força e a eloquência dum documento. Sentia-se que a obra tinha sido escrita por um principiante […mas] ao atingir o fim do livro, quase me senti agradecido ao autor por desconhecer ainda alguns dos segredos técnicos da arte em que se iniciava. Mercê dessa ausência, a sua obra tinha a sinceridade e produzia o enlevo dum cântico matinal, puro e luminoso. O drama dos homens que Amado ia desvelando parecia até mais verdadeiro graças justamente à excessiva sobriedade com que o tratava”.

A figura de Amado é hoje consensual. E popular. Muito graças ao sucesso da adaptação para televisão dos seus romances cujo mais reconhecido será, com certeza, “Gabriela, Cravo e Canela”. Em Lisboa, a exposição na Biblioteca Nacional “Jorge Amado em Portugal” patente até 29 de Setembro registra o percurso acidentado da recepção do autor de “Jubiabá”. Também a Fundação José Saramago, até 20 de Setembro, reserva uma mostra de fotografias, correspondência, material áudio e videográfico, para além de sessões de música e representações encenadas, junto à Casa dos Bicos, na passada sexta-feira, data certa dos cem anos do nascimento do escritor.

Namorado das estrelas

As palavras de Ferreira de Castro no mesmo prefácio de “Gabriela…”, ou ainda mais cedo, num texto homólogo que publica na revista “Vértice”, em 1951, legitimam o fulgor do jovem escritor.

“Esta vitória universal da obra de Jorge Amado assenta firmemente sob um conjunto de qualidades que são tão inúmeras quanto diversas. Romancista de alma veemente, namorado das estrelas e intérprete da justiça”, prosseguia o autor de “Emigrantes”, Amado “soube transmitir, com uma arte exaltante, quanto há de poesia, de generosidade, de desapego às ambições mesquinhas, no espírito brasileiro, e dar-nos nesse clima, através de uma fina sensibilidade, aliada às exigências da análise, os dramas do povo, as suas ansiedades, as lutas vencidas e sempre recomeçadas, as suas mais profundas esperanças – esse lume que acalenta as noites tão expectantes e tão longas das causas humanas”. Reconhecia-lhe um forte poder de comunicabilidade em perene comunhão com os seus humildes heróis, “uma densa simpatia em todas as páginas de todas as situações mesmo das cenas mais ásperas”. Uma força que subjuga os seus leitores “com uma espécie de magia, um feitiço, uma eficácia que ora parte da forma para a essência ora da essência para a forma como uma seiva aromática que ressumasse do cerne da árvore para a casca. E assim vemos a transformação da realidade normal para a realidade literária operar-se de tão crente maneira que os personagens, apesar da atmosfera da poesia em que se agitam e de que elas próprias se embebem, não perderem jamais a sua humanidade.”

O Nobel escapou

E ainda assim, o Nobel escapou-lhe. Como a tantos os outros, aliás. Como a Borges, ou a Drummond de Andrade, um dos nomes ponderados por um grupo de escritores de língua portuguesa, num jantar em Lisboa, para lançar um Nobel em português, ainda antes do 25 de Abril. Mesmo depois, a ideia manteve-se. Vergílio Ferreira, Ramos Rosa, longe estava ainda Saramago. Amado? “Duvido muito. Não tenho qualquer hipótese”, relata António Valdemar, presidente da Academia portuguesa de Belas Artes, um almoço com o baiano. “Deixei de ser comunista mas recebi o prémio Estaline, a medalha Lenine, as mais altas condecorações da União Soviética e nunca eliminei essas distinções, nem da minha bibliografia nenhum dos meus livros comunistas. Por tudo isto, nunca terei o Nobel. O Nobel vai ser para Saramago”. Assim foi porque “não tem como eu tenho obras de exaltação comunista”, antecipava o brasileiro. Depois do prémio, é verdade que Saramago subiu aos céus, mas cem anos depois Amado ainda permanece entre nós.

Extraído do sítio Ponto Final

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