14 de agosto de 2012

DOSSIÊ MODERNISMO - SEMANA SEM JUÍZO - Marcos Antonio de Moraes

“Irritante, prematura e desorganizada”, a Semana de 22 é apresentada criticamente por Mário de Andrade.

"Dançarina", escultura
modernista em bronze de
Victor Brecheret, 1925.
“Como tive coragem para participar daquela batalha!”, admira-se Mário de Andrade na conferência “O movimento modernista”, em abril de 1942, no Rio de Janeiro. Transcorridos 20 anos da Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, entre 13 e 18 de fevereiro de 1922, o escritor traz à memória eventos, personagens e ideários da vanguarda. No palco, sob vaias, ao lado de Oswald de Andrade (1890-1954), Menotti Del Picchia (1892-1988), Guilherme de Almeida (1898-1966) e outros modernistas, lê poemas de Pauliceia desvairada, ainda inédita em livro. Enfrenta caçoadas e ofensas na escadaria do teatro, quando discorre sobre as linhas de força estéticas que orientavam as principais obras expostas no saguão.

Avaliando a própria atuação no festival, Mário admite que teria fraquejado sem o entusiasmo do grupo. Entretanto, seguro de seus interesses artísticos, julga que permaneceria na rota traçada desde a exposição da pintora Anita Malfatti (1889-1964), em 1917, sintonizada com a vertente expressionista. “Com ou sem” a Semana, afirma, “minha vida intelectual seria o que tem sido”. Determina, então, o comprometimento com as ações culturais que favorecessem a liberdade de criação. Para ele, a Semana apenas marcava uma data, a passagem do momento heroico que a preparou para o período destruidor que viria depois, cumprindo a transformação do pensamento estético brasileiro.

A conferência, absorvendo as tensões políticas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e do Estado Novo – período ditatorial do governo de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945 –, apura melancolicamente o legado da geração vanguardista que, apesar de ter avançado no terreno da arte, não conseguiu o “amelhoramento político-social do homem”. O discurso memorialístico transmite o desencanto de quem acreditava que os modernistas não deveriam “servir de exemplo a ninguém”, mas sim “de lição”, ou seja, caberia à nova geração recusar o abstencionismo diante de uma “fase integralmente política da humanidade”.

Em cartas e artigos, Mário de Andrade fixou outras considerações sobre a Semana de Arte Moderna. Nesses textos esparsos, julgou-a com distanciamento crítico, evitando idealizá-la ou menosprezá-la. Se hoje a Semana se apresenta supervalorizada no imaginário brasileiro, isto se deve, em grande medida, a estratégias bem-sucedidas de seus participantes. O evento também esteve a serviço de interesses pessoais de inserção no campo da cultura e de ideologias políticas. Em 1932, por exemplo, aparece vinculada à Revolução Constitucionalista, o movimento armado paulista que pretendeu derrubar o governo Vargas e promulgar uma nova Constituição.

Logo depois da Semana, em 23 de fevereiro de 1922, o cronista Hélios – pseudônimo de Menotti Del Picchia – divulga em sua coluna no Correio Paulistano a carta “muito particular” que Mário de Andrade lhe endereçara dias antes, aludindo ao “Carnaval da Semana de Arte Moderna”. Na mensagem, o remetente contabiliza os lucros do escândalo que os tornaria “celebérrimos”, com os “nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira”. O expediente nada ingênuo de que se utilizam para ganhar projeção, por meio da polêmica, encontra equivalência nas “molecagens” do grupo. Suspeitou-se que Oswald de Andrade tivesse orquestrado, na sombra, a reação animosa da plateia do Municipal, ou ainda que ataques contra os modernistas na imprensa teriam sido divulgados anonimamente por eles mesmos, como desvela Rubens Borba de Moraes (1899-1986) em Testemunha ocular, livro publicado em 2011.

Poeta consagrado Mário de
Andrade não teve uma trajetória
isenta de conflitos. Acima,
retrato do poeta por Anita Malfatti.
Na crônica de arte “Os jacarés inofensivos”, publicada na Revista do Brasil em abril de 1923, Mário se refere à luta acesa entre “arte moderna e a tradicional”, evocando, de passagem, a “deliciosa e mais que interessante Semana de Arte Moderna”. Em abril do ano seguinte, na sétima das “Crônicas de Malazarte”, na carioca América Brasileira, faz um primeiro balanço do movimento, com ênfase no “inesquecível” espetáculo, no qual “passaram-se em revista as forças de orientação” da vanguarda: “Oh! Semana sem juízo. Desorganizada, prematura. Irritante. Ninguém se entendia. Cada qual pregava uma coisa... Os discursos não esclareciam coisa nenhuma... Noções vagas; entusiasmo sincero; ilusão engraçada, ingênua, moça, mas duma ridiculez formidável... A Semana de Arte Moderna não representa nenhum triunfo, como também não quer dizer nenhuma derrota. Foi uma demonstração que não foi. Realizou-se. Cada um seguiu para seu lado, depois. Precipitada. Divertida. Inútil.” A edição do conjunto das dez Crônicas de Malazarte, em preparo por Telê Ancona Lopez, fornece o grau de consciência daquele que, desejando incitar o debate cultural, faz o prognóstico, em bases polêmicas: “A fantasia dos acasos fez [da Semana] uma data que, creio, não poderá mais ser esquecida na história das artes nacionais. A culpa é do idealismo brasileiro, que mais uma vez manifestou a sua falta de espírito prático. Maior defeito da alma nacional”.

Mário de Andrade, em 4 de dezembro de 1924, escreve a Prudente de Moraes, neto (1904-1977), que editava, com Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), a revista Estética no Rio de Janeiro. Temendo que o periódico sofresse ingerências, relembra 1922: “Doce em que toda a gente mexe sai porcaria. Sai Semana de Arte Moderna onde até o impressionismo camuflado da Zina Aita andava de braço dado com o expressionismo da Anita”. O assunto volta à baila dias depois, em 16 de dezembro, quando partilha com o amigo seu parecer negativo dos ensaios de Ronald de Carvalho (1893-1935), reunidos em Estudos Brasileiros. No capítulo dedicado às artes plásticas, detecta a importância maior dada a Zina em uma listagem de pintores representativos do modernismo, gerando o comentário: “Na nossa Semana de Arte Moderna que tinha bluffs fantásticos que só a ignorância brasileira dessas coisas podia engolir”, pois o pontilhismo e o “talento decorativo” da artista não acusava “tendência moderna nenhuma”.

Se as apreciações de Mário sobre a Semana, entre 1922 e 1924, acusam blefes e a improvisação do grupo modernista, procurando discernir gestos fecundos e cabotinismos, em 11 de julho de 1941, em carta à poeta Henriqueta Lisboa (1901-1985), recorda-se da repercussão do certame em sua vida pessoal. Perdera “todos os alunos, tinha dias inteiros vazios sem que fazer”. Assim, encontrara tempo para conviver mais cotidianamente com Anita Malfatti, que o retratava em telas. Ficava sem os alunos particulares de piano, mas, por sorte, não o despediram do posto de professor de História da Música, cuja cátedra vitalícia no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo tinha conquistado no final de janeiro de 1922.

Do maestro João Gomes de Araújo (1846-1943), um dos fundadores da tradicional instituição de ensino, veio, aliás, a azeda carta reprovando o jovem colega em sua “fúria do entusiasmo pelo futurismo das artes”. Em 13 de fevereiro de 1922, o criador da ópera “Carmosina” acusa Mário de Andrade de pregar ideias avançadas entre os estudantes e de desrespeitar o programa de piano, fazendo tocar peças de autores que, segundo ele, eram desconhecidos e inaceitáveis. Reprova-o, ainda, por convidar as alunas a assistirem à “festa das artes”, ou seja, à Semana de Arte Moderna, que, em sua equivocada previsão, marcaria uma triste época na nossa História.

Fechando a mensagem, indica, com ironia, a melhor solução para se preservar o nome do Conservatório: “Não seria melhor que o Sr. Mário renunciasse a sua Cadeira (...) e estabelecesse com os seus colegas da propaganda, um Instituto de Futurismo das Artes? Me parece isso mais lógico do que o amigo estar no meio de colegas atrasados, fazendo parte em um estabelecimento, que não proceder de forma diferente do que o faz, respeitando as tradições antigas.” Mário fez ouvidos moucos e continuou admirando o “intransigente” mestre, referindo-se a ele, no Diário de S. Paulo, em 2 de novembro de 1933, como “uma das figuras mais salientes da nossa música”. Guardou a carta do compositor e outras desse tumultuado período, como as que lhe foram dirigidas pelo escultor alemão Wilhelm Haarberg (1891-1986), participante da exposição modernista. Hoje esses artigos e cartas estão no acervo do escritor no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, e ajudam a iluminar os bastidores da Semana.

* Marcos Antonio de Moraes é professor da Universidade de São Paulo e autor de Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade (Edusp/Fapesp,2007).

Saiba Mais - Bibliografia

ANDRADE, Mário de. “O movimento modernista”. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins/INL, 1972.

ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto – 1924/36. Org. Georgina Koifman. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

CAMARGOS, Márcia. Semana de 22. São Paulo: Boitempo, 2002.

LOPEZ, Telê Ancona; SANTOS, Tatiana M. L.; MORAES, Marcos Antonio de. Catálogo da série Correspondência de Mário de Andrade. Edição eletrônica. São Paulo: IEB-USP/Vitae, 2003. Disponível em www.ieb.usp.br

Extraído do sítio Revista de História

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