20 de janeiro de 2012

A FALTA QUE ELIS FAZ - Mônica Lucas


Morte da cantora completa  três
 décadas hoje. Data será marcada
 por eventos e lançamentos.
Era 19 de janeiro de 1982, quando o brasileiro teve seu almoço interrompido por uma notícia trágica: a cantora Elis Regina estava morta. Emissoras de rádio e televisão interromperam a programação para acompanhar as últimas informações sobre o caso. Uma parada cardíaca havia vitimado uma mulher na vitalidade dos 36 anos, no auge do sucesso profissional, com planos de se unir ao namorado e prestes a assinar um contrato com a gravadora Som Livre. Dois dias depois, o laudo do Instituto Médico Legal apontava a causa do falecimento: uma fatal mistura de álcool com cocaína.

A família levantou suspeitas sobre o laudo, assinado pelo polêmico legista Harry Shibata - responsável pelo documento que declarou como suicida o jornalista Vladimir Herzog, morto nas dependências do DOI-CODI. Além desse fato, havia o interesse de preservar a imagem de Elis Regina. Apesar das multidões que lotaram seu velório e enterro - só comparáveis à comoção vista com Chico Alves e Carmen Miranda - todos sabiam o linchamento moral pelo qual pode passar um ídolo de fato ou supostamente sucumbido por excesso de drogas. O caso recente de Amy Winehouse não nos deixa mentir.

No entanto, como diz sua biógrafa, a jornalista Regina Echeverria, Elis não se enfileirou ao lado de outros ídolos que morreram de overdose. A fama de difícil, geniosa, temperamental não ocultou o reconhecimento de seu enorme talento. Conseguiu a aclamação de vários críticos como a melhor cantora do Brasil, em uma época em que o País tinha intérpretes do quilate de Maria Bethânia, Gal Costa, Clara Nunes e Nara Leão. Título raras vezes contestado. Desde o primeiro compacto simples, em 1961, chamava atenção pela afinação ímpar, timbre de voz claríssimo e muita personalidade vocal. No auge da carreira, nos anos 70, conseguia imprimir extrema emoção sem afetar a técnica. Antológica a interpretação de "Atrás da Porta", de Chico Buarque e Francis Hime, no álbum "Elis Regina", de 1972.

Dos 11 aos 13 anos, ela cantou todos os domingos no programa Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Já mais conhecida e crescidinha para um programa desse nome, foi para a Rádio Gaúcha. Em 1965, com 19 anos, chegou a São Paulo, depois de breve passagem pelo Rio de Janeiro, onde havia tido seu primeiro contato com a bossa nova. O produtor musical Carlos Imperial, à época na TV Continental, conta que a ideia inicial era transformá-la em uma nova Celly Campello, dona do hit "Banho de Lua". "Eu não quero ser Celly Campello. Eu vou ser Elis Regina", respondeu a cantora, já dando uma mostra de sua personalidade.



Fã de Ângela Maria e outros cantores do rádio, ela preferiu ouvir os conselhos do então namorado, Edu Lobo. É dele a canção que a fez explodir no cenário musical brasileiro, quando venceu o Festival da TV Excelsior, em 1965, com "Arrastão" - uma performance surpreendente para uma jovem de pouco mais de 20 anos, cujo movimento de rodopio dos braços levou o coreógrafo Lennie Dale a apelidá-la de Hélice e a amiga Rita Lee a chamá-la de Elis-cóptero. Era o começo de um voo que a alçaria ao posto de primeira estrela da canção popular da era da televisão, inclusive com a apresentação de programas próprios. Cantoras contemporâneas a ela como Bethânia e Nara se fizeram no teatro.

Apesar da afinidade com a televisão, foi uma das últimas artistas a gravar para o Fantástico, na Rede Globo, prática comum nos anos 70. Para ela, o tratamento dispensado aos cantores era muito dependente das telenovelas da emissora. Programas sobre música brasileira, acreditava, eram decorrência de um personagem da novela "Pai Herói". "É sempre uma questão de modismo e se a gente ficar muito cheio de escrúpulos, muito cheio de ´nheco-nheco´, numa postura de ´não me misturo´, vai a cada dia que passa ficando pior", disse em entrevista à Folha de São Paulo, em 1979. Sua opinião sobre a valorização da música nacional era tão ferrenha que havia liderado, em 1967, uma passeata na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo. A causa: protestar contra a "invasão" das guitarras elétricas. Se podia ser acusada de reacionária nesse aspecto, tinha uma postura bem diferente quando a discussão abordava o papel da mulher. Embora não se assumisse feminista, era favorável à legalização do aborto e gostava de falar sobre a "opressão da mulher pelo capitalismo", como em uma entrevista à TV Gaúcha, em 1981.

Ela havia participado pouco antes de uma série de entrevistas e musicais do especial "Mulher 80", da Globo - originado a partir do seriado "Malu Mulher", considerado um marco da televisão nacional, ao retratar a condição da mulher brasileira no fim dos anos 1970, com todas as polêmicas inerentes ao período, como o divórcio.



Orgulhando-se de falar o que pensava, questionava o mercado de trabalho para os artistas e não poupava a indústria fonográfica. Recebia por trimestre, pela execução das músicas, de quinze a dezoito mil cruzeiros - "menos de um salário mínimo", segundo contou à Folha de São Paulo, em 1979. Não escondia a mágoa do cartunista Henfil, do Pasquim, que por duas vezes a "enterrou" em charges. A motivação foi uma gravação de Elis, a contragosto, conclamando a população a cantar o Hino Nacional e depois uma apresentação na Olimpíada da Semana do Exército. Num momento de repressão política, parecia imperdoável a um artista tão engajado quanto Henfil uma concessão como essa. O irmão do cartunista, o sociólogo Betinho, indiretamente levou Elis do inferno ao paraíso com os opositores do regime militar. Sua interpretação de "O Bêbado e a Equilibrista" se tornou o hino da Anistia.

Durante a carreira, Elis se destacou também pela complexidade e diversidade de gêneros por que transitou. A bossa nova deu lugar à MPB, mas cantou também samba, rock e jazz. Alimentava a curiosidade musical, gostava de conhecer novos compositores e, se eles a conquistavam, tinham espaço garantido. Foi assim com Renato Teixeira ("Romaria"), Ivan Lins ("Madalena"), Belchior ("Como nossos pais"), João Bosco e Aldir Blanc ("O Bêbado e a Equilibrista"), que eram até então desconhecidos. Com Fagner, gravou "Mucuripe", em 1972, projetando-o nacionalmente. Um dos seus favoritos era também um grande admirador em retribuição: Milton Nascimento a elegeu como musa inspiradora e a ela dedicou inúmeras composições.

Segundo o ex-marido, Ronaldo Bôscoli, o temperamento genioso de Elis Regina escondia uma pessoa insegura. Em entrevistas, não escondia o desconforto com shows, que fazia "porque tinha que fazer". Sensível, frágil às vezes, sem papas na língua, generosa musicalmente e, para os amigos, dona de um humor peculiar. Sua personalidade era tão complexa quanto os rumos musicais que tomou. Daí ser mais fácil entender porque a amiga Rita Lee gosta de complementar o apelido de Pimentinha cunhado por Vinicius de Moraes: "era uma pimenta doce". Tempero, que 30 anos depois, continua fazendo falta.

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