31 de outubro de 2011

MÁRIO QUINTANA E OS JACARANDÁS DE PORTO ALEGRE

Marco Quintana - Jornal do Comércio
"Eu sempre que parti, fiquei nas gares
Olhando, triste, para mim..."

Mário Quintana, Porto Alegre 21/10/71

Este é um verso inédito de Mário Quintana, manuscrito, com caneta Bic vermelha, no dorso de uma folha de papel com o timbre da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, a mim dedicado, em 1971*.

Estávamos no bar do Elói, no terceiro andar do imponente prédio da Companhia Jornalística Caldas Júnior, Porto Alegre. Mário Quintana havia subido para seu tradicional lanche de fim de tarde: café preto com quindim. Era tão sagrado este ritual que nós, as estagiárias da Folha da Tarde, chamávamos o poeta de "Mário Quindim". Adorávamos compartilhar aquele momento com nosso "colega" de jornal, sempre sorridente e falando baixinho. Quando eu lhe disse que ia embora do Brasil, Quintana me pediu um papel e rabiscou o verso acima com a seguinte dedicatória: "lembrança para a Zélia". Guardo até hoje com orgulho aquela folhinha dobrada, relíquia exclusiva para a estagiária que nada sabia da vida. Só anos depois de ter passado por tantas gares e aeroportos, em tantos países, ao longo de 18 anos de auto-exílio para fugir da ditadura, pude compreender a verdadeira dimensão daquele verso. Ele, que quase nunca viajava e que de estrangeiro só conheceu Buenos Aires, tudo sabia do viajante que deixa sempre um pouco de si em cada partida.

Não poderia deixar de lembrar de Mário Quintana no momento em que se comemora o centenário do poeta gaúcho de Alegrete, um dos maiores do século XX, embora a Academia Brasileira de Letras nunca o tenha reconhecido entre os grandes. Foram muitas as homenagens para aquele que viveu tão discretamente num quarto de hotel em Porto Alegre (Hotel Majestic, hoje Casa de Cultura Mário Quintana) de onde saía diariamente para a redação do Correio do Povo, esquina da rua da Praia com a rua Caldas Júnior. Era o poeta no meio de nós, com toda sua magnitude e simplicidade. Roupas modestas, (não lembro de tê-lo visto de terno a gravata), andar vagaroso, parecia tímido mas jamais recusava uma conversa, embora fosse econômico nas palavras. Morríamos de curiosidade sobre a vida particular do poeta mas não tínhamos coragem de perguntar: se era casado, se tinha filhos, se tinha namorada. Então ficava aquele mistério. Um dia, um velho jornalista do Correio do Povo, amigo de Mário, disse que o poeta só tinha amores platônicos: Greta Garbo e Cecília Meirelles, com direito a fotos no quarto. Mais tarde, mais moderno, ele se apaixonaria também pela jovem Bruna Lombardi, atriz e poeta. Mas nunca o vimos passear de mãos dadas com uma mulher.

Nesta época, Quintana gostava de cigarro e de um traguinho. Depois os médicos o proibiram: "Não por virtude, se pudesse, beberia até hoje", confessou ele ao escritor Rogério Menezes, em 1989. Mas disse que não tinha nada contra os poetas que utilizavam a bebida como fonte de inspiração. "Rimbaud, por exemplo, era um gênio que bebia. Os demais são simplesmente bêbados que escrevem".

Foi no Correio do Povo que Mario Quintana deixou sua marca maior, o "Caderno H", uma espécie de poesia em prosa. Ali, podíamos ler frases como estas: "A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha" ou "Morte: nada de maior; simples passagem de um estado para outro assim como quem se muda do estado do Rio Grande do Sul para Santa Catarina".

Era outubro quando Quintana escreveu "O Viajante", mês dos jacarandás floridos na Praça da Alfândega onde acontece a Feira do Livro de Porto Alegre. Naquele tempo era fácil encontrar por ali poetas e escritores conversando com o povo entre as barracas de livros: Érico Veríssimo, Carlos Nejar, Armindo Trevisan, e claro, o grande Mário Quintana sobre quem Érico escreveu: "Descobri um dia que o Quintana na verdade é um anjo disfarçado de homem. Às vezes, quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora (Ah! como anjo seu nome não é Mário, e sim Malaquias)."

Falo de Quintana situando-o numa época áurea de Porto Alegre. Anos 70. Época de ditadura, sim. Mas época de resistência, de muitos jornais nanicos enfrentando a repressão, como o Coojornal (uma publicação criada por uma cooperativa de jornalistas com centenas de associados), de grandes concertos no Teatro São Pedro, de Vinicius de Moraes e Elis Regina no Teatro Leopoldina (que nem existe mais). A própria Companhia Jornalística Caldas Junior, era uma grande empresa, motivo de orgulho para os gaúchos, com três jornais diários, uma rádio e uma TV.

O Rio Grande do Sul vivia esplendidamente a glória de seus ícones que vimos ruir aos poucos. Primeiro a empresa jornalística Caldas Júnior, agora a Varig. E eu que costumava dizer que os gaúchos cuidavam bem de seus cavalos e de seus aviões... Ledo engano. Lenta agonia. Os poderes públicos, que tanto se beneficiaram das páginas e das asas destes símbolos, pouco ou quase nada fizeram para impedir a ruína. Da Caldas Júnior, falida nos anos 80, sobrou o prédio e um arremedo de jornal com o mesmo título, "Correio do Povo". De tão pálida imitação do grande jornal histórico, o tablóide atual deveria mudar de nome em respeito à memória dos antepassados. Prefiro a morte dos títulos, como a Folha da Manhã e a Folha da Tarde, que formaram uma super geração de jornalistas como Caco Barcellos, Carlos Dornelles e Rosvita Suaressig, entre outros profissionais de renome.

Os tempos são outros. Só a poesia é perene. Tive sorte de ser contemporânea do doce poeta, solitário na vida e solidário na obra. Seus versos tem o frescor da atualidade, a leveza dos pássaros, ("eles passarão, eu passarinho"), a densidade da dor e a marca da esperança ("enquanto há esperança, há vida"). Um dia Mário Quintana escreveu no "Caderno H": "O mais triste das dedicatórias são as datas". Nem sempre. O papelzinho na mão, datado de 21 de outubro de 1971, é a prova mais feliz e inesquecível do encontro da jovem jornalista com o grande poeta.

* Zélia Leal é jornalista e professora da Faculdade de Comunicação da UNB.

(Extraído do Blog do Noblat)

1º FIM DE SEMANA DA 57ª FEIRA DO LIVROS DE PORTO ALEGRE

Moacyr Scliar na Feira

Sábado foi marcado por duas programações sobre a vida do autor gaúcho. No documentário Moacyr Scliar – Palavra de Escritor, o autor gaúcho, falecido no começo deste ano, emocionou o público que compareceu para assistir a homenagem. Na entrevista, concedida em 2010 à L&PM Editores, ele contou um pouco da sua história de vida, dando destaque para a infância humilde, mas sempre com incentivo à leitura. Nos depoimentos, o escritor relata que, naquela época, não existia a Feira do Livro de Porto Alegre. Mas a mãe, que era professora, de vez em quando levava os filhos à Livraria do Globo, no centro da Capital, para comprar livros. “Naquela noite, eu não dormia”, disse Scliar, relembrando a euforia de menino. Chegando lá, a dificuldade era escolher apenas algumas entre tantas obras. Ele conta que, certa vez, quando perguntou quantos podia levar, a mãe deixava bem claro que, em casa, podia faltar roupas, eletrodomésticos e até comida, menos livros. Ela lhe dizia: “Pode comprar quantos quiser”, lembra o autor. O sonho da mãe era que, além de leitor, Scliar se tornasse um escritor. Aos 13 anos, ganhou do pai uma máquina de escrever e começou a encarar o ofício de escritor de forma mais profissional. Foi então que passou a ser conhecido como “O escritorzinho do Bonfim”. Mesmo assim, se formou em Medicina e seguiu a vida médica, porém, nunca tendo deixado de escrever. Publicou mais de setenta livros, entre crônicas, contos, ensaios, romances e literatura infanto-juvenil. Em 2003, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tendo recebido antes vários prêmios literários como o Jabuti (1988, 1993 e 2009), o Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) (1989) e o Casa de las Américas (1989). O vídeo foi exibido no começo da tarde deste sábado, na Tenda de Pasárgada. A tarde de programação em homenagem a Scliar contou também com uma encenação da crônica “Memórias de um aprendiz de escritor”, no mesmo local. (Extraído do sítio Feira do Livro de Porto Alegre

"- Scliar era um grande amigo da Área Infantil e Juvenil." Com esta frase emotiva, Sônia Zanchetta, coordenadora da ala destinada a crianças e adolescentes, explicou, na cerimônia de abertura oficial Biblioteca Moacyr Scliar, a honraria que a Câmara Rio-grandense do Livro - CRL presta ao autor. Desde 2005, a Feira conta com espaço para leitura chamado de Biblioteca do Cais e que, agora, ganha o nome do escritor gaúcho. A iniciativa tocante é uma marca para a família e para os leitores. Moacyr sempre teve predileção pelas crianças e tinha esperança de contribuir para um mundo melhor. – Revelou Wremyr Scliar, irmão do homenageado, presente na solenidade. Com 500m2, a Biblioteca Moacyr Scliar foi apresentada a autoridades e visitantes. A alta qualidade do acervo serve de referência e os diversos ambientes atraem um público diversificado. Tanto os bebês, na Bebeteca, como os adolescentes naDucha das Letras encontram os livros mais indicados por especialistas para determinada faixa etária. Os deficientes visuais têm, à disposição, vários títulos em braile, computador e impressora especiais. Os deficientes auditivos têm auxílio em libras, língua brasileira de sinais. O presidente da CRL, João Carneiro, enfatizou que o espaço oferece muitas possibilidades de trabalho e têm muitas frentes, uma delas é o “Quarto da Patrona”, um dormitório de adolescente que expõe obras de autoria da patrona, Jane Tutikian. Ao cortar a fita do novo ambiente, a patrona o denominou Quarto da Bia, sua personagem do livro Ale, Marcelo, Ju e eu... Jane Tutikian lembrou com muito carinho de Moacyr Scliar: "- Eu guardo bilhetes, e-mail’s, mensagens que o Scliar me mandava a cada livro lançado. Esse quarto também é uma grande emoção." (Extraído do sítio Feira do Livro de Porto Alegre)

Suspense

Suspense foi o assunto do debate, realizado na noite de domingo (30), na sala dos Jacarandás, no Memorial do RGS, e que reuniu as escritoras Patrícia Melo e Cristiane Lisbôa, com a intermediação do atual secretário municipal da Cultura, Sérgius Gonzaga. Na oportunidade, as autoras abordaram a questão da construção dos personagens e a relação com os leitores. Falando sobre os segredos da construção de novelas policiais, tema do encontro, Patrícia Melo destacou que “o personagem é o elemento mais importante numa narrativa; é a razão de ser da literatura”. Também considera que a pesquisa e a observação é que dão caráter verdadeiro à história. A escritora vê, ainda, a relação entre o autor e o editor como muito importante para o sucesso de um projeto editorial. Com relação ao leitor, ela afirma que escreve o que gosta e como gosta, sem se preocupar em agradar a todos. Ela autografou, ontem à noite, sua obra Escrevendo no Escuro (Editora Rocco). Já Cristiane Lisboa concorda com Patrícia Melo no aspecto de não se preocupar em escrever para satisfazer o gosto do público, “pois se acaba ficando refém do leitor”. O secretário Sérgius Gonzaga destacou o gosto dos gaúchos pela leitura, embora os índices ainda sejam baixos. Lembrou o grande número de oficinas literárias existentes na Capital, que têm lançado no mercado muitos novos autores. Quanto ao número de leitores, ele concordou com as duas escritoras, em que “a educação é o fator fundamental na formação deste público”. (Extraído do sítio Feira do Livro de Porto Alegre)

"Onde a Religião Termina"


Ex-frei franciscano, ex-educador católico e ex-reitor de seminário, o escritor Marcelo da Luz abordou em palestra, na tarde de hoje (29), no Santander Cultural, o polêmico tema de seu livro Onde a religião termina? (Editora Editares). O autor faz, em sua obra, a desconstrução do pensamento religioso. Ele deixou o sacerdócio para se dedicar à pesquisa pessoal sobre o tema e se tornar um crítico do assunto. Formado em Filosofia e Sociologia, o autor define-se, hoje, como um cidadão livre e adepto da Conscienciologia, campo de estudos que se insere entre a ciência e a religião e tem como foco a consciência total, inclusive a extrafísica. Luz, que passou 20 anos como sacerdote, nega que tenha havido qualquer fato negativo ou uma tentativa frustrada de reforma em sua ordem religiosa, para abandonar a Igreja Católica em 2004. Sereno em sua explanação, Marcelo da Luz ressalta que a religião, de modo geral, “aprisiona e impede o cidadão de procurar o sentido de sua própria vida livremente, tornando as mentes sectárias e discriminatórias”. Acredita que sua obra fala para pessoas que já possuem alguma dúvida sobre a crença religiosa. O autor explica que, hoje, há 60 mil religiões no mundo, metade delas “ramificações do Cristianismo”. Afirma que cada grupo religioso acredita que só sua crença está certa e somente através dela haverá salvação. Salienta, ainda, a dependência que se estabelece entre os seguidores e seus líderes. “O Cristianismo também faz isso na prática”, afirma, lembrando a metáfora “do pastor e das ovelhas” tão usada nas pregações católicas. O livro de Luz discute a estrutura do discurso religioso, “de natureza autoritária, embora o seu conteúdo seja bom, pois prega o amor, a paz, o perdão”. Considera o diferencial de seu texto em relação aos demais autores que pregam o ateísmo, pois ele diz “conhecer a mente religiosa por dentro”, além dos bastidores da igreja Católica daqui e de outros países. Em relação ao Catolicismo, Luz destaca três problemas: o celibato obrigatório; o alto índice de homossexualidade e a necessidade dos padres esconderem sua opção sexual, pois a Igreja condena este comportamento; a pedofilia. Sobre esta última questão, considera que este crime não deve ser atribuído somente ao indivíduo, pois afirma que a instituição deve ser também responsabilizada. Outro aspecto das religiões que critica é o da violência, “que é intrínseca às crenças, na medida em que defendem uma verdade absoluta”. “O Cristianismo é, potencialmente, tão violento quanto às duas outras religiões monoteístas, o Judaísmo e o Islamismo”, afirma. Luz também não adere ao ateísmo radical, que trabalha com a ideia de que Deus não existe. Considera que, com isso, o discurso fica limitado apenas às religiões monoteístas. Ao encerrar sua palestra, observou que, até hoje, nenhuma religião ou filosofia, conseguiu ainda decifrar a causa primeira do universo. “Não temos respostas ainda” – garante, ao se declarar adepto da Conscienciologia, onde todas as manifestações, mesmo as parapsíquicas, são consideradas frutos da consciência humana e sua materialização. (Extraído do sítio Feira do Livro de Porto Alegre)

Feira do Livro na internet

A CASTIDADE COM QUE ABRIA AS COXAS - Carlos Drummond de Andrade

A castidade com que abria as coxas 
e reluzia a sua flora brava. 
Na mansuetude das ovelhas mochas, 
e tão estrita, como se alargava. 

Ah, coito, coito, morte de tão vida, 
sepultura na grama, sem dizeres. 
Em minha ardente substância esvaída, 
eu não era ninguém e era mil seres 

em mim ressuscitados. Era Adão, 
primeiro gesto nu ante a primeira 
negritude de corpo feminino. 

Roupa e tempo jaziam pelo chão. 
E nem restava mais o mundo, à beira 
dessa moita orvalhada, nem destino. 

Carlos Drummond de Andrade, in 'O Amor Natural'

(Extraído do sítio Citador)

O SUPREMO PALHAÇO DA CRIAÇÃO - Henry Louis Mencken

A velha noção antropomórfica de que todo o universo se centraliza no homem – de que a existência humana é a suprema expressão do processo cósmico – parece galopar alegremente para o baú das ilusões perdidas. O facto é que a vida do homem, quanto mais estudada à luz da biologia geral, parece cada vez mais vazia de significado. O que no passado deu a impressão de ser a principal preocupação e obra-prima dos deuses, a espécie humana começa agora a apresentar o aspecto de um sub-produto acidental das maquinações vastas, inescrutáveis e provavelmente sem sentido desses mesmos deuses.
(...) O que não quer dizer, naturalmente, que um dia a tal teoria seja abandonada pela grande maioria dos homens. Pelo contrário, estes a abraçarão à medida que ela se tornar cada vez mais duvidosa. De fato, hoje, a teoria antropomórfica ainda é mais adaptada do que nas eras de obscurantismo, quando a doutrina de que um homem era um quase Deus foi no mínimo aperfeiçoada pela doutrina de que as mulheres inferiores. O que mais está por trás da caridade, da filantropia, do pacifismo, da “inspiração” e do resto dos atuais sentimentalismos? Uma por uma, todas estas tolices são baseadas na noção de que o homem é um animal glorioso e indescritível, e que sua contínua existência no mundo deve ser facilitada e assegurada. Mas esta ideia é obviamente uma estupidez.

No que se refere aos animais, o mesmo num espaço tão limitado como o nosso mundo, o homem é tosco e ridículo. Poucos bichos são tão estúpidos ou cobardes quanto o homem. O mais rafeiro dos cães tem sentidos mais agudos e é infinitamente mais corajoso, para não dizer mais honesto e confiável. As formigas e abelhas são, de várias formas, mais inteligentes e engenhosas; gerem os seus sistemas de governo com muito menos confusões, desperdícios e imbecilidades. O leão é mais bonito, digno e majestoso. O antílope é infinitamente mais rápido e gracioso. Qualquer gato doméstico comum é mais limpo. O cavalo, mesmo suado do trabalho, cheira melhor. O gorila é mais gentil com os seus filhos e mais fiel à companheira. O boi e o asno são mais produtivos e serenos. Mas, acima de tudo, o homem é deficiente em coragem, talvez a mais nobre de todas as qualidades. O seu pavor mortal não se limita a todos os animais do seu próprio peso ou mesmo da metade do seu peso - excepto uns poucos que ele degradou por cruzamentos artificiais -, o seu pavor mortal é também daqueles da sua própria espécie – e não apenas dos seus punhos e pés, mas até dos seus risos. 

Nenhum outro animal é tão incompetente para se adaptar ao seu próprio ambiente. A criança, quando vem ao mundo, é tão frágil que, se for deixada sozinha por aí durante alguns dias, infalivelmente morrerá, e essa enfermidade congênita, embora mais ou menos disfarçada depois, continuará até a morte. O homem adoece mais do que qualquer outro animal, tanto no seu estado selvagem quanto abrigado pela civilização. Sofre de uma variedade maior de doenças e com maior frequência. Cansa-se ou fere-se com mais facilidade. Finalmente, morre de forma horrível e geralmente mais cedo. Praticamente todos os outros vertebrados superiores, pelo menos no seu ambiente selvagem, vivem e retêm as suas faculdades por muito mais tempo. Mesmo os macacos antropóides estão bem à frente dos seus primos humanos. Um orangotango casa-se aos sete ou oito anos de idade, constrói uma família de setenta ou oitenta filhos, e continua tão vigoroso e sadio aos oitenta quanto um europeu de 45 anos. 

Todos os erros e incompetências do Criador chegaram ao seu clímax no homem. Como peça de um mecanismo, o homem é o pior de todos; comparados com ele, até um salmão ou um pássaro são máquinas sólidas e eficientes. O homem transporta os piores rins conhecidos da zoologia comparativa, os piores pulmões e o pior coração. Os seus olhos, considerando-se o trabalho a que são obrigados a desempenhar, são menos eficientes do que o olho de uma minhoca; o Criador de tal aparato ótico, capaz de fabricar um instrumento tão tosco, deveria ser surrado pelos seus fregueses. Ao contrário de todos os animais, terrestres, celestes ou marinhos, o homem é incapaz, por natureza, de deixar o mundo em que habita. Precisa de se vestir, proteger e armar-se para sobreviver. Está eternamente na posição de uma tartaruga que nasceu sem o casco, um cão sem pêlos ou um peixe sem barbatanas. Sem a sua pesada e desajeitada carapaça, torna-se indefeso até contra as moscas. E Deus não lhe concedeu nem um rabo para espantá-las. 

Vou chegar agora a um ponto de inquestionável superioridade natural do homem: ele tem alma. É isto que o separa de todos os outros animais e o torna, de certa maneira, senhor deles. A exata natureza de tal alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar com autoridades a respeito de sua função. A qual seria a de fazer o homem entrar em contacto direto com Deus, torná-lo consciente de Deus e, principalmente, torná-lo parecido com Deus. Bem, considere-se o colossal fracasso desta tentativa. Se presumirmos que o homem realmente se parece com Deus, somos levados à inevitável conclusão de que Deus é um cobarde, um idiota e um patife. E, se presumirmos que o homem, depois de todos esses anos, não se parece com Deus, então fica claro imediatamente que a alma é uma máquina tão ineficiente quanto o fígado ou as amígdalas, e que o homem poderia passar sem ela, assim como o chimpanzé, indubitavelmente, passa muito bem sem alma. Pois é este o caso. O único efeito prático de se ter uma alma é que ela infla no homem vaidades antropomórficas e antropocêntricas – em suma, com superstições arrogantes e presunçosas. Ele se empertiga e se empluma só porque tem alma – e subestima o fato de que ela não funciona. Assim, ele é o supremo palhaço da criação, o reductio ad absurdum da natureza animada. 

Não passa de uma vaca que acredita dar um pulo à Lua e organiza toda a sua vida sobre esta teoria. É como um sapo que se gaba de combater contra leões, voar sobre o Matterhorn ou atravessar o Helesponto. No entanto, é esta pobre besta que somos obrigados a venerar como uma pedra preciosa na testa do cosmos. É o verme que somos convidados a defender como o favorito de Deus na Terra, com todos os seus milhões de quadrúpedes muito mais bravos, nobres e decentes – os seus soberbos leões, os seus ágeis e galantes leopardos, os seus imperiais elefantes, os seus fiéis cães, os seus corajosos ratos. O homem é o insecto a que nos imploram, depois de infinitos problemas, trabalho e despesas, a reproduzir. 

Henry Mencken, in 'O Livro dos Insultos (1919)'
Extraído do sítio Citador.
Biografia de Henry Mencken

DICA: NIETZSCHE PARA ESTRESSADOS - 99 Doses de Filosofia para Despertar a Mente e Combater as Preocupações

Formato: Livro
Título original: NIETZSCHE FOR UNDER STRESS
Autor: ALLAN PERCY
Editora: GMT SEXTANTE
1ª edição - 2010
112 p
Assunto: CIÊNCIAS SOCIAIS - HUMANAS


Sinopse: "Nietzsche para Estressados" é um manual inteligente e estimulante que reúne 99 máximas do gênio alemão e sua aplicação a várias situações do dia a dia. A sabedoria de Nietzsche é de grande utilidade na busca de uma solução para uma série de problemas, tanto na vida pessoal quanto na profissional.
Livro criado por Allan Percy para nos auxiliar nos momentos em que precisamos tomar decisões, recuperar o ânimo, encontrar o caminho certo e relativizar a importância dos fatos da vida. É indicado para quem procura inspiração no pensamento filosófico mais influente da era moderna para combater as angústias e os medos dos dias de hoje.
Cada capítulo é iniciado por um aforismo do mestre, seguido de uma interpretação atual. Muitas vezes, sua sabedoria é associada às ideias de outros autores renomados, enriquecendo ainda mais o assunto.
A sabedoria popular alerta que "o sucesso sobe à cabeça". Para Allan Percy, autor de "Nietzsche para Estressados", "o ego é a droga mais pesada".
No 15º capítulo do livro, intitulado "O Sucesso Sempre Foi um Grande Mentiroso", Allan aponta que a humildade, mais do que um simples valor moral, nos ajuda a manter os pés no chão.
Inspirado pelo filósofo alemão, o autor pondera que "partilhar um ponto de vista sobre qualquer assunto, revelamos nossas motivações e nossos desejos mais íntimos."
Nossas opiniões são a pele na qual queremos ser vistos: Nossos julgamentos dizem mais sobre nós mesmos do que aqueles que julgamos. Cada opinião é uma gota no vasto oceano do caos e por isso podemos dizer que o homem mais sábio é aquele capaz de passar pelo mundo sem emitir qualquer juízo. (Livraria da Folha)

Cada capítulo é iniciado por um aforismo do mestre, seguido de uma interpretação atual. Muitas vezes, sua sabedoria é associada às ideias de outros autores renomados, enriquecendo ainda mais o assunto. 
O legado de Nietzsche induz à reflexão e oferece uma forma mais inovadora de superar as dificuldades. Conheça algumas de suas frases marcantes: 
- O que não nos mata nos fortalece.
- O destino dos seres humanos é feito de momentos felizes e não de épocas felizes.
- Quem tem uma razão de viver é capaz de suportar qualquer coisa.
- O reino dos céus é uma condição do coração e não algo que cai na terra ou que surge depois da morte.
- Não há razão para buscar o sofrimento, mas, se ele surgir em sua vida, não tenha medo: encare-o de frente e com a cabeça erguida.
- Os maiores êxitos não são os que fazem mais ruído e sim nossas horas mais silenciosas.

31 DE OUTUBRO: DIA D - DIA DE DRUMMOND

Dia D lembra o poeta Drummond, na segunda (31)

Nesse dia, foi instituído o Dia D - Dia de Drummond, quando o Instituto Moreira Salles promoverá diversas atividades em todo país como leitura de poesias em livrarias, museus, exibição de filmes e programas dedicados a autor de "A rosa do Povo".

Além da programação em alguns estados brasileiros foi desenvolvido um site especial para as festividades. Através do endereço www.diadrummond.com.br, o leitor encontra um mecanismo especial de interatividade.

Em sua página da internet a campanha pede: "Nas escolas, universidades, livrarias, bares, museus, TVs, rádios, centros culturais e mesmo em solidão, não importa onde e como, que todos se lembrem de festejar Drummond e a sua poesia."

Confira programação completa na página Dia D. [vermelho.org]
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Otto Lara Rezende fala de Carlos Drummond de Andrade


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Carlos Drummond recordado na segunda-feira em Lisboa

O aniversário do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade é assinalado na segunda-feira, em Lisboa, na Casa Fernando Pessoa, com o «Dia D», inteiramente dedicado ao escritor, numa associação ao Instituto Moreira Salles, do Brasil, que lançou a iniciativa.

A estreia mundial do documentário «Consideração do Poema», sobre o escritor, prevista para as 18:30, culmina a jornada iniciada às 10:00, com a projeção do filme «No Meio do Caminho», feito a partir da leitura do poema homónimo de Drummond de Andrade em diferentes línguas, segundo a programação anunciada pela Casa Fernando Pessoa.

O documentário «Consideração do Poema» estabelece um panorama sobre a obra de Drummond de Andrade, a partir de leituras feitas por figuras da cultura brasileira, como o escritor e compositor Chico Buarque, os músicos Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto, as atrizes Fernanda Torres e Marília Pera, o filósofo e poeta Antonio Cícero e o escritor Milton Hatoum. [DiárioDigital/Lusa]

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Lygia Fagundes Telles lê passagens de lê passagens de “Procura da poesia”, de A rosa do povo (1945).


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Carlos Drummond de Andrade ganha dia em sua homenagem nesta segunda

No poema O tempo passa? Não passa, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), há um verso que demonstra o quanto o escritor itabirano não dava importâncias às datas: “São mitos do calendário tanto o ontem como o agora, e o teu aniversário é um nascer toda a hora…”. E é exatamente o espírito dessa frase que os organizadores do Dia D, que será promovido amanhã, quando o mineiro completaria 109 anos, querem disseminar. “A intenção é esta: realizar esse evento todos os anos, não só aqui, já que é uma iniciativa do Instituto Moreira Salles (IMS). Queremos que a ideia se espalhe por todos os cantos e faça parte do calendário cultural do país, sem ser feriado. Que seja algo automático e corriqueiro para todos. Drummond merece ser sempre celebrado”, declara Eucanaã Ferraz, um dos curadores do projeto e consultor de literatura do IMS.

O Dia D Drummond é inspirado em iniciativa semelhante, quando não só os irlandeses mas gente de todo os cantos festejam o escritor James Joyce, anualmente, em 16 de junho, com o Bloomsday. Para Flávio Moura, outro curador do projeto, o objetivo do instituto é promover e difundir a obra do mineiro. E, para isso, está convocando parceiros e amigos para comemorar a data, em todo o Brasil, e até em Portugal, seja nas escolas, universidades, livrarias, museus ou até mesmo sozinho. “É mais uma oportunidade de reverenciar Carlos Drummond de Andrade. Este ano, o instituto servirá como difusor, para que, nos anos futuros, as pessoas possam organizar por conta própria suas comemorações. Vamos ter uma programação intensa em várias cidades, como Rio, São Paulo, principalmente, e também em Itabira e Belo Horizonte, com a exibição de filmes e documentários, recitais de poesia, debates. Temos despertado o interesse e a simpatia de muita gente e atraído muitos parceiros”, revela Flávio.

No começo do mês, foi lançado o site www.diadrummond.com.br, que traz todas as atividades ligadas ao evento e ainda oferece aos admiradores da obra do poeta oportunidade para enviar por e-mail seus próprios vídeos com leituras de poemas de Drummond. O material resultará em novo filme. “O interessante é que o que nos chegou até agora são declamações de poemas nada convencionais”, repara Flávio Moura. O site também terá conteúdo especial, como o filme Consideração do poema, produzido pelo IMS justamente para 31 de outubro, no qual nomes importantes da cultura brasileira leem poemas de Carlos Drummond de Andrade, entre eles Chico Buarque, Caetano Veloso, Fernanda Torres, Adriana Calcanhotto, Cacá Diegues, Antonio Cícero, Paulo Henriques Britto e Marília Pêra.

Enquanto isso... em Itabira

O projeto Caminhos drummondianos, nome do museu de território que resgata a história de Itabira por meio da poesia de Carlos Drummond de Andrade, está com placas novas revitalizadas pela Vale e deverá se expandir para outras cidades que têm ligação com a poesia drummondiana, como Belo Horizonte, Mariana, Rio de Janeiro e distritos de Itabira, como Senhora do Carmo e Ipoema. O projeto consiste em 44 placas com poemas de Drummond espalhadas por locais que inspiraram o poeta. “Fiz a pesquisa dos locais que tinham a ver com cada poema e alguns desses espaços como a praça onde fica a maria-fumaça, em Itabira, que tem a placa ‘O maior trem do mundo’, foi toda restaurada. Outros locais estão tendo melhorias também. A prefeitura da cidade está investindo nisso”, adianta a professora Dadá Lacerda.

110 anos

O ano de 2012 vai marcar os 110 anos de nascimento de Carlos Drummond de Andrade e os 25 de sua morte, datas que prometem uma série de novidades. O poeta vai ganhar casa nova, ou seja, depois de 27 anos tendo seus livros publicados pela Record, a Companhia das Letras começa a reeditar toda a obra do escritor, com novo projeto gráfico e conselho editorial próprio. Drummond também será homenageado em Paraty, já que será o tema da Flip do próximo ano. (Por Ana Clara Brant, do Estado de Minas) [Diáriodepernambuco]

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30 de outubro de 2011

FATOS E FOTOS - Carlos Heitor Cony

Muitos, quase todos nós, ficamos chocados com as fotos do cadáver de Kaddafi divulgadas pela mídia mundial.

Antigamente, nas velhas Redações, evitava-se a publicação de fotos impactantes.

Em agosto de 1976, era editor de uma revista e tive em mãos a foto de JK após o acidente na estrada, evidente que nem pensei em publicá-la, nem mesmo o Instituto Carlos Éboli, onde a foto foi feita para constituir peça importante do inquérito, distribuiu aquela imagem para o grande o público.

Em outro caso, não idêntico, mas análogo, há tempos, como editor de uma revista ilustrada, recebi de um repórter que trabalhava na minha equipe a foto de uma moça estuprada que foi jogada ao mar no Chapéu dos Pescadores, trecho da avenida que liga o Leblon a São Conrado.

Para todos os efeitos, foi a imagem mais terrível que meus olhos já viram, pois os assassinos da jovem usaram uma garrafa de Coca-Cola para sodomizar a vítima ainda em vida.

Há uma corrente de profissionais da mídia que adota a tese da necessidade de informar tudo o que acontece, o leitor tem o sagrado direito de saber de tudo, nos mínimos detalhes. Mesmo os escabrosos, de péssimo gosto e que em nada contribuem para clarificação de um fato, por mais delituoso que seja.

Mas voltemos ao caso de Kaddafi. Um ditador criminoso que massacrou milhares de adversários e de gente que nem chegava a ser inimiga dele, povo inocente que ele não poupou para se manter no poder por mais de 40 anos.

Merecia o fim que teve, nem por isso a foto de seu cadáver mutilado serviria para confirmar a tese de que o crime, no final das contas, não compensa.

O corpo de Che Guevara também foi fotografado, mas a imagem que resultou de seu cadáver teve efeito contrário, muitos viram em seu semblante sereno, os olhos entreabertos sem revelar agonia ou desespero, a semelhança com o próprio Cristo.

E por falar em Cristo, o próprio é , sem dúvida, o corpo mais exposto da história, em toda a sua crueza. Os cristãos fizeram dele o símbolo de uma religião que mudou o mundo. No início, bastava a cruz para lembrar o sacrifício do Calvário.

Mais tarde, sobretudo na Renascença, pintores e escultores colocaram o corpo quase nu coberto de chagas, porejando sangue da cabeça aos pés. Nas catedrais espanholas há crucifixos terríveis, impossível qualquer tipo de prece diante de um homem que muitos consideram um Deus.

Tivemos também a exposição do corpo de outro ditador, Benito Mussolini, que foi pendurado num gancho de açougue, de cabeça para baixo, numa praça de Milão.

E para citarmos um exemplo doméstico da vingança que não respeita a morte, temos o caso de Tiradentes. Não bastou enforcá-lo.

A rainha de Portugal mandou esquartejá-lo, pedaços de seu corpo foram expostos ao longo da estrada que ligava o Rio de Janeiro a Ouro Preto, então capital de Minas e sede da Inconfidência. De um lado, a vingança da Corte contra o rebelde; de outro, a lição para que ninguém mais tentasse se libertar da metrópole europeia.

Por acaso, citei exemplos contraditórios. Dois tiranos (Mussolini e Kaddafi) e dois heróis de causas populares (Che Guevara e Tiradentes).

O caso de Cristo é especial. Um dominicano francês, frei Corigan OP, publicou um artigo nos meados do século 19, propondo que a igreja abolisse o corpo de Jesus dos crucifixos, ficasse apenas com a cruz enxuta e poderosa, bastava como símbolo e mensagem. E para espantar os demônios e os vampiros.

Para compensar a falta de um elemento humano como logotipo de uma religião que prega o amor, ele propunha a imagem do Menino Jesus na manjedoura de Belém, os braços estendidos, não para pedir proteção, mas para proteger aqueles que desejava salvar.

Bem, encerro esta crônica fazendo uma autocrítica. Falei em Kaddafi, Che Guevara, Tiradentes, JK, Mussolini e Jesus Cristo.

De quebra, na jovem estuprada. Contrário a boa norma do jornalismo, falo muito e não concluo nada.

De bom grado, deixo a conclusão para os outros - se por acaso é possível concluir alguma coisa da história da humanidade.

(extraído da Folha de São Paulo, 28/10/2011)

O AMOR E O VINHO - Sigmund Freud

Pense-se, por exemplo, na relação que existe entre o bebedor e o vinho. Não é verdade que o vinho oferece sempre ao bebedor a mesma satisfação tóxica, que a poesia tem comparado com frequência à satisfação erótica — comparação, de resto, aceitável do ponto de vista científico? Já alguma vez se ouviu dizer que o bebedor fosse obrigado a mudar sem descanso de bebida porque se cansaria rapidamente de uma bebida que permanecesse a mesma? Pelo contrário, a habituação estreita cada vez mais o laço entre o homem e a espécie de vinho que ele bebe. Existirá no bebedor uma necessidade de partir para um país onde o vinho seja mais caro ou o seu consumo proibido, a fim de estimular por meio de semelhantes obstáculos a sua satisfação decrescente? De modo nenhum. Basta escutarmos o que dizem os nossos grandes alcoólicos, como Bócklin, da sua relação com o vinho: evocam a harmonia mais pura e como que um modelo de casamento feliz. Porque é que a relação do amante com o seu objecto sexual será tão diferente? 

Sigmund Freud, in 'Contribuições à Psicologia da Vida Amorosa (1912)'

Extraído do sítio Citador.pt

O MOÇO DO SAXOFONE - Lygia Fagundes Telles

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.
Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.
— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?
— É o moço do saxofone.
Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.
— E o quarto dele fica aqui em cima?
James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.
— Aqui em cima.
Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.
— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.
— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.
— Deitou com você?
— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...
Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.
— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?
James encolheu o ombro.
— Chifre dói.
Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.
—- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.
— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.
— E os outros não reclamam?
— A gente já se acostumou.
Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.
— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...
Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.
— Licença?
Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.
— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.
— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?
Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.
— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.
— O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!
Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.
— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?
James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.
— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!
Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.
— Não topo isso, pomba.
— Isso o quê?
Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.
— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.
— Feito agora.
Pela cara vi que era mentira.
— Não é preciso, tomo na esquina.
A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.
— Sim senhor!
— Sim senhor o quê? — perguntou James.
— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.
James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.
— Mulher é o diabo...
Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.
— Ora, não precisava se incomodar...
Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.
— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?
— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.
Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.
O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
— E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.
Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.
— Está servido?
— Obrigado, não posso fumar.
Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.
— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?— Eu toco saxofone.
Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.
Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.


(extraído do Blog Clube dos Contos)


* Leitura de Lygia Fagundes Telles de seu conto "O Moço do Saxofone", de 1966 (Leituras Sabáticas do Estadão de 3/12/2010):