29 de novembro de 2011

UMA CONVERSA SOBRE O DESEJO - Viviane Moreira


Dois sertanejos caminhando, cada um com sua matula rasa, que mal dá para um dia inteiro no roçado, o filho pergunta ao pai:

- Que qui é desejo?

O pai responde:

- Êta palaivra bunita, fio, qui ardi dentru da genti, qui nem fagúia das fuguêra de São João. Às veiz, um quenturão bão, traz veiz né bão não. Mais ardi, ardi, ardi…

- Iguar pimenta di revirá os zói?

- Ô fio, a gente é qui tem qui sabê cumé qui vai ardê…

- Êta, mar cumé qui nóis fica sabeno?

- Cum o vivê.

- Hmmm.

Gente do sertão. Da lida com a terra. Gente que conhece bem as sovinices da vida. Gente reverenciada por Guimarães Rosa, e que cedo aprende que “viver é perigoso”. Gente com olhar pra dentro, por vezes esquecido pelas gentes da cidade. Este diálogo poderia ser a primeira conversa entre pais e filhos. Entre namorados. Entre irmãos. Entre sócios. Um pacto a se renovar entre marido e mulher.

Seguindo a linguagem do pai sertanejo, poderíamos chamar o desejo de calor da vida. “Fogo” que nos movimenta em busca de um saber, de um fazer, do amor… Fazemos escolhas, mesmo quando não queremos, e mesmo sem sabermos por quê. Prosseguimos pelo caminho certo, bem-sucedido e, mais tarde, descobrimos que não estamos felizes, apesar de estarmos “bem”. Até quando pensamos que viver não custa tanto, a vida nos dá uma rasteira e, na marra, temos que nos reinventar. E qualquer postura que adotamos na dinâmica da vida, em seus altos e baixos, não nos livramos da teimosia do desejo, nem da sua sombra, quando ele, o desejo, nos falta – e sabe-se lá como a falta de desejo cobra de nós sua fatura…

Poderíamos aceitar mais o desejo como algo próprio da condição humana — estruturante — e talvez assim pudéssemos suavizar a angústia do existir. Poderíamos caminhar com mais leveza… Quem sabe, poderíamos até nos interessar mais pelo o que nos torna, desde o nascimento, “iguais”? Todavia, aceitaríamos com mais serenidade que o desejo de um nem sempre corresponde ao desejo do outro?

São tantos autoenganos pelo caminho… Tantos conflitos que surgem a partir do que nos escapa, ou do que foge do nosso controle. Sem falar dos conflitos que vêm da diferença…

Se nos rendêssemos à nossa condição de seres desejantes e “simplesmente” nos constituíssemos como tal, ainda assim precisaríamos inventar tanta moda pra suportar a diferença? Tantos rótulos, categorias e padrões? Quem sabe, poderíamos exorcizar nossos fantasmas em relação ao desejo? Nele ordenados e estruturados pra viver em liberdade, poderíamos nos tornar mulheres e homens capazes de aceitar o desejo – o nosso e o do outro – sem tanta doideira travestida de normalidade. De bem com a vida, pra valer, festejaríamos o desejo com alegria. E também, a diversidade. Talvez assim, homens e mulheres, mais resolvidos com seus próprios seres desejantes, pudessem dar alguma consistência à liberdade. E à alteridade.

Mas parece que nos distanciamos da liberdade. E com a violência cada vez mais grave e banal, parece que formamos uma sociedade pouco afeita com a diferença. Uma sociedade ameaçada pelo desejo? Hostil com a diferença e, cada dia, mais violenta.

Onde nos perdemos na liberdade? Sobretudo na liberdade como início de promessas? Liberdade como “autocomeço” – “porque existe um começo que o homem pode começar; e, começando por nascer, ele se destina a nascimentos renováveis que são também atos de liberdade” (Kant citado por Julia Kristeva em O gênio feminino: A vida, a loucura, as palavras – Hannah Arendt). Liberdade para (re)começar, para (re)nascer. Liberdade preservada pelo nascimento – este como possibilidade de começo para a promessa de “singularidade de cada existência”, como argumenta Hannah Arendt em A condição humana. Nascimento. Começo. Liberdade. Renascimento. Recomeço. Liberdade.

Como diz a personagem Godofredo (Rodolfo Vaz) do conto “Os três nomes de Godofredo”, de Murilo Rubião (adaptado por Silvia Gomez para o teatro – na peça O amor e outros estranhos rumores): “Todo mundo tem direito de mudar de lugar”. Que lugar? O lugar da falta de desejo. Mas é preciso abandonar o conforto do tédio, do ressentimento, da rotina massacrante, da vida em que falta sentido.

Desejo. Igualdade. Liberdade. Em algum ponto dessa história, nos desviamos. E nos tornamos fraternos – no medo?
* * *
Crônica publicada originalmente no Amálgama.

Também publicada no Mucury Cultural.

Extraído do blog Balaio da Vivi, de Viviane Moreira

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