28 de novembro de 2011

MEDO - Charles Kiefer


O que vejo, ao retrovisor, são imagens invertidas: a cicatriz que estava no lado direito do rosto vai para o esquerdo. O rosto, aprendi no táxi, não é a soma de testa, nariz, bochechas e queixo, o rosto é outra coisa. Tem gente com feição furiosa que é mansa como cordeiro, tem gente com jeito de passarinho que é jararacuçu. Aqui, saber interpretar o rosto é uma questão de sobrevivência. Tive companheiros de profissão que cometeram o último erro, leram delicadeza onde só havia mágoa funda, ódio bruto. Hoje, os tais, os que não souberam ler, soletram vermes e terra, no Campo Santo. Eu, sobrevivo, sem tirar os olhos dos que se aboletam no banco traseiro. Entrou no carro, está registrado. Pelos espelhos, vejo além do rosto. Da prática, quase posso dizer a profissão, o estado civil, o bairro em que o vivente mora. É como se as pessoas fossem incorporando, na cara, o que fazem, o que são. Ontem, o casalzinho não me enganou. Ela, num vestido florido, cabelo de francesinha; ele, num camisão xadrez, melenudo. Ainda antes de apanhá-los na esquina da Oswaldo Aranha com a Santo Antônio, enfiei o trinta e oito embaixo da perna esquerda. Estavam muito longe de um supermercado, a sacolinha com as compras era disfarce, só podia ser. Entraram, sem cumprimentar. Boa tarde, eu disse. Ela respondeu, ele continuou quieto. Fixei-me nos olhos dela, ansiosos, e na boca dele, cheia de trejeitos e dentes saudáveis. Cafungadores. São os mais perigosos. Quem tem fome, não mata. Ou muito raramente. Quase sempre na primeira vez, que o nervosismo dispara o gatilho. Quem cheira, já atravessou o Rubicão, sabe que não tem volta. Matam, que já estão mortos. Segui rodando, o mais lento possível, queria tirá-los da toca. Atravessei o Túnel da Conceição, peguei a Farrapos, em direção à Zona Norte, conforme o solicitado. Não demorou cinco minutos, o magrão reclamou. Tudo bem, eu disse, e apertei o acelerador. Eu já ia recolher, provoquei. Pelo retrovisor não deu para ver, mas tenho certeza que as pupilas dela dilataram. Desde quando na luta? Ela quis saber. Cinco anos, eu disse. Na luta de hoje, ela continuou. Fiquei calado, à espreita. Desde que hora na rua? Ela insistiu. Seis da matina, rodo doze horas. Meu filho roda as outras doze, na noite. Somos sócios. Encurtei caminho, não valia a pena ficar toureando a novilha. O dia foi gordo, eu continuei, como que satisfeito. Assim que largar vocês, vou comprar um vestido, Dona Encrenca merece. Dona o quê?, ela perguntou. Minha mulher, expliquei. Riram, os dois. Aproveitei a distração deles, meti o pé no freio. Antes que se recuperassem, saltei do carro, abri a porta traseira e calcei a mulher no revólver. Mãos na cabeça, que arrebento os miolos dessa puta. Medo, nessa hora não se pode ter medo. Já me livrei de várias, porque aprendi a não ter medo. Nunca tive medo. Minto, uma vez sim, há trinta anos. O cheirador obedeceu, que ainda não estava em síndrome de abstinência. Na sacola de compras, a loira oxigenada trazia o trinta e dois niquelado. Ele, tinha no bolso um canivete de pressão. Formou uma fila de carros atrás do meu, na avenida, e um coral de buzinas. Seus merdas, não vêem que é um assalto? Demoraram pra perceber que era, e que o assaltante não era eu. Mantive os dois com as mãos espalmadas sobre o capô, até que chegasse uma viatura. Nem fui à DP, os praças me conhecem, me aposentei como delegado. Quando o Marcos, que era funcionário concursado do Banco do Estado, entrou no Plano de Demissão Voluntária, compramos o carro e a licença. Ia ficar fazendo o que, em casa? Vendo bundas na televisão? Eu rodo de dia, ele roda de noite. Temos ponto na frente da Assembléia Legislativa. Ele tem clientela fixa, transporta essa gurizada rica para as boates, as festas de formatura, os casamentos, leva as madames perfumadas para casa, depois das sessões do Theatro São Pedro. De vez em quando, ele me conta depois, acaba em cama de cetim. Eu, de dia, ando com gente fina, deputados, prefeitos, a mulherada que vem saracotear no parlamento, essa gente do Piratini, subversivos de paletó e gravata. Ainda há pouco, levei um deles ao Centro Administrativo. Um velho conhecido. Vez que outra, a moira coloca a gente no mesmo barco. Ou no mesmo carro. No mesmo porão. O que vi, ao retrovisor, na primeira vez em que ele entrou no meu táxi, foi o olhar suave, quase doce, o mesmo olhar sereno, de pomba enamorada, que tinha aos dezoito anos. Envelheceu. Está careca, mais gordo, a barba branca. Com certeza, nas horas de folga, nos finais de semana, continua a escrever poesia. Eu confiscava, na prisão, tudo o que ele punha no papel. Examinava verso a verso, à procura de mensagens cifradas. Poemas para a namorada, ele dizia no pau-de-arara, poemas para Alice. Medo, o poetinha me fez sentir medo. Nem em tiroteio, com as balas zunindo perto dos ouvidos, senti tanto medo como naquele sábado, há trinta anos. Ele entrou no táxi, afrouxou o nó da gravata. Pra onde vamos, doutor? Eu indaguei, antes de reconhecê-lo pelo espelho central. Senti que seu corpo se contraía, como que atingido por uma corrente elétrica. Ele ainda não sabia de onde vinha o medo, a ansiedade, o desconforto que o assaltava sob o efeito da minha voz. Minhas mãos grudaram no volante, molhadas de suor, meu intestino se contorceu, os músculos das pernas se retesaram. Eu sabia que ele andava por ali, no Palácio, secretário, assessor especial, coisa assim. A revolução deles deu no que deu, mas chegaram ao poder pelo voto, quem diria. Justo eles, que zombavam da democracia burguesa. Era impossível que eu o esquecesse. O único homem que me fez sentir medo. Pelo retrovisor, vi seus olhos verdes, tensos, quase suplicantes, como que em busca de um registro, um detalhe, que conectasse a voz que o angustiara a um rosto, a um episódio. Dos porões do Palácio da Polícia, eu disse. Nos conhecemos lá, na fossa, como vocês chamavam aquele buraco. O rosto crispado se descontraiu, o olhar ficou vago. Mirou, de viés, a multidão atravessando a faixa de segurança. Eu podia ver seu ar de beato, satisfeito consigo mesmo, vaidoso com o prazer que extraía de sua ridícula superioridade moral. Olho por olho, dente por dente, julgo eu. Por isso, gosto dos árabes, eles não perdoam. Depois, durante toda a viagem, evitou me encarar, mergulhado na sua atitude plácida, quase bovina, budista. Eu conhecia bem esse alheamento, essa fuga da realidade. Naquele sábado, tentei de todas as formas arrancá-lo desse pântano, fazê-lo abrir a boca, confessar o assalto, entregar a célula. Arranquei chumaços de cabelos, pedaços de carne, mas nenhuma palavra que incriminasse outros agitadores. Era sábado, e para que eu pudesse conviver um pouco com o meu filho, levara-o comigo, ao trabalho. Enquanto ele brincava no andar de cima, sob os cuidados de algum agente, eu apertava o poeta, no de baixo. Pedro, codinome, é claro, era franzino, barba rala, cabelo comprido e sujo, mas de uma resistência admirável, é preciso reconhecer. Naquele sábado, cansei de bater, apertar, eletrocutar. Antes que eu o matasse, o ódio contra aquela arrogância estúpida podia me levar ao desatino, entreguei-o ao cabo Esteves, um maricas humanitário, para que o lavasse, estava mijado e cagado, e para que o reanimasse, era o dia da primeira visita da família dos presos. Tomei uma ducha, subi ao escritório, brinquei um pouco com o Marcos, deitei-me no sofá e adormeci. Acordei com a gritaria do soldado Alfeu, o menino sumira. Marcos tinha nove, quase dez anos. Vasculhei cada sala, nos andares de cima. Conferi o relógio, passava das seis. Eu tinha dormido mais de quatro horas. Ao chegar às celas, nos porões, o coração disparou. Vi, no fundo do corredor, à luz baça, uma sombra à porta do banheiro, e ouvi um murmúrio. Avancei com dificuldade, meio que escorado à parede, sem coragem de enfrentar o que viria, o que eu pressentia. Medo, eu senti medo, como nunca tinha sentido. Marcos, carne da minha carne, não tinha nada a ver com aquela miséria, com aquele horror, eu cumpria ordens, ele era apenas um menino. Meu filho, meu filho, eu murmurava a cada passo. Parei na porta do cubículo, sem fôlego. Pedro, barbeado, já recuperado da sessão da tarde, um olho quase fechado pelo inchaço do rosto, estava trocando os curativos diante de um espelho manchado pela umidade, com o auxílio de Marcos. Sobre a pia, o jovem revolucionário deitara a navalha inocente, recém-lavada, com a lâmina aberta. A seu lado, prestativo e diligente, meu filho estendia-lhe uma gaze limpa, imaculada. Pedro virou o rosto e me encarou, com seu olhar suave, quase doce, sereno, de pomba enamorada. Ao seu dispor, eu disse, mas ele desceu do táxi em silêncio.

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Extraído do sítio Releituras



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Material fonográfico da Rádio Senado FM sobre o conto "Medo" de Charles Kiefer:

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