20 de novembro de 2011

A ESTRELLA DE ABSYNTHO (Fragmento) - Oswald de Andrade

O cadaver nú, de cabellos atados numa toalha, foi levado cautelosamente até a parede do imaginário atelier.
Elle apanhára-lhe o dorso, despencado em ligeira curva. O velho felino, barbudo e de bocca furada que conduzia de costas o cortejo, tomando-a pelas axillas, era Rodin. E o grande diabo ossudo, Mestrovic, recem-chegado da Servia, o que levava as pernas geladas para sempre. Depuzeram-na no estrado de páu, inerte e dura, murcho o ventre acima do triangulo negro e symbolico. Depois começaram a crucifixão.
Para lá, na vastidão respeitosa da sala, havia grandes estatuas, atadas aos punhos para traz, com retorcimentos fixos, todas recobertas como imagens em Semana Santa.
E havia amphoras e flores.
Iam crucifica-la na parede núa e branca. Rodin, levantando-a pelos inuteis seios, dava ordens impassiveis. Mestrovic batia já o seu longo prego. E apenas o braço que lhe haviam entregue a elle, endurecera e resistia, empurrando-o para longe.
Rodin esperava. Mestrovic tinha a cabeça de furia em ataque do Sergio monumental de Kossovo.
Era preciso dominar a consciente resistencia do braço. Aos repelões o membro em angulo cedeu, acceitou a linha recta da cruz, num crac-crac de ossos internos.
Elle tomou o martello e o prego longo, bateu a primeira pancada inutil na palma cartilaginosa. E Rodin dizia que era preciso haver martyres para haver arte.
Mestrovic atravessára victoriosamente a mão que segurava. Rodin baixára-se a perfurar os dois pés na mesma agulha de ferro.
Elle então bateu. E houve um tinir repetido de aços, apagado pela repulsa de borracha dos membros ankilosados e murchos.
Salpicaram gottas glaciaes como remorsos nos braços nús dos crucificadores.
E a cabeça de frango virou, o corpo suspenso desceu num peso bruto, alargando as chagas nos pregos e pondo em relevo estrias de musculos, de nervos, de costellas.
Então abriu-se a porta e um esplendido ephebo nú, coroado de myrrha, appareceu e gritou como um arauto de consciencias heroicas:
- Sangue frio.
Ella permanecia toda estylisada na parede que ficára como uma cruz de mil braços.
E Jorge de Alvellos viu que era o cadaver de alma que tinha crucificado para estudar anatomia... Ella despregou as grandes postas rachadas, viva, soluçante, para elle!
O esculptor abriu os olhos na escuridão de seu quarto. E percebeu a madrugada neutra, num silencio de vidas estranhas.
Onde estava? Escorregára-lhe dos braços afflictos. Onde estava? Levantou-se de um salto. Ella fugira...
Atirou-se para a porta: permanecia fechada na noite. Voltou, bateu os angulos desertos, foi ao leito. Pareceu-lhe vel-a ainda. Levantou os lençóes, o colchão: não estava.
Estava longe. Onde? Na enfermaria? Não. Mais longe. No necrotério? Não. Mais longe. Na cóva.
Jorge d'Avellos sentou-se. Viu descer, descer, no escuro, num desequilibrio, sobre os hombros que tinha aconchegados, um mundo apagado de formas.
E ficou alli, numa concentração musculosa de cariatide.
Oswald de Andrade


* Copiado da Revista Klaxon - Mensário de Arte Moderna - nº 6, outubro de 1922, São Paulo (acervo digital da USP)


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