26 de novembro de 2011

DA BELLE ÉPOQUE À ERA DOS JAZZ (Cont. IV) - Arthur de Faria

Em clima de empolgação total, Albino compra de uma só vez dois saxes alto, um sax soprano e uma bateria. De quebra, seguindo mais um conselho de seu novo amigo Pixinguinha, pede pra amigos marinheiros trazerem do Rio alguns arranjos escritos para essa formação. Mais um golaço: nessa época nenhum desses grupos tocava música arranjada. O lance era cada um por si e Deus que não se metesse (tanto que as edições de músicas em partitura não tinham nem ao menos os acordes do acompanhamento. Era a melodia, a eventual letra e só. Cada um fazia o seu). Arranjos escritos de música popular eram coisa de bandas, militares ou não, como as que gravavam suas polcas e valsas nos Discos Gaúcho, na década anterior.

O grande Alcides Gonçalves, de quem falaremos muito, cantando do jeito que
dava antes de se popularizar o microfone | Foto: Reprodução
E é lá que se tem os primeiros registros de saxofones na cidade: já em 1913, pelo menos dois quartetos usavam o instrumento: o Grupo Faceiro e o Grupo Sulferino (sax, flauta, cavaquinho e violão). Severino Hernandez também se sabe que tocou no Theatro Apollo dia 28 de junho de 1926 a polka-chôro A Defeza do Fantoche (sic), de Octavio Dutra. E já haviam passado pela cidade, no Cine-Theatro Coliseu (esquina das hoje Voluntários da Pátria e Pinto Bandeira, centro de Porto Alegre), o saxofonista Euclides Sena, O Príncipe Negro, e os já citados Turunas Pernambucanos, que tinham o lendário Ratinho no sax soprano. A bateria, como se viu, não era novidade absoluta por causa de Arthur Elsner e da Gordon Stretton Jazz Band. Mas mesmo assim, não se tem registro de Arthur tocando bateria. E a Gordon Stretton só estava passando por aqui.

Portanto, o importante nisso é que, mais do que bateria e saxofone, o que o agora equipadíssimo Albino iria mostrar aos porto-alegrenses era a primeira banda com baterista e vários saxofonistas gaúchos! Tocando juntos!

Microfones de 1927 | Foto: Reprodução
E não é só. Sempre curioso, ele também compra uma outra novidade espetacular. Um aparelho insólito, que captava o som, mandava pra um outro negócio ligado na corrente elétrica e esse, por sua vez, reenviava o som para uma caixa preta que aumentava incrivelmente o volume. Tudo ligado por fios. Já pensou??! O troço se chamava microfone, e era o último grito nos Estados Unidos, onde tinha começado a ser comercializado há apenas um ano. Invenção graças a qual outras duas novidades logo se popularizariam: o rádio e as gravações elétricas.

Neste mesmo ano de 1927 era inaugurada a Rádio Sociedade Gaúcha. Viabilizada, como todas as rádios, graças ao tal microfone. E os estúdios brasileiros também sofreriam uma revolução, em parte por causa dele: no lugar dos precários cones de metal até então utilizados para a gravação mecânica, agora o lance era com eles, com imensa melhora no resultado sonoro.

A invenção seria a alegria de muitos cantores – e o despeito de outros tantos. Afinal, até então, crooner que se prezasse tinha de conseguir se fazer ouvir no gogó. Ou, no máximo, com o auxílio de deselegantes megafones de lata, pra não ser soterrado pelo som da banda ou orquestra.

Agora isso tudo era coisa do passado! O grupo de Albino tinha bateria, saxofones e microfone! Êita regional incrementado!

Só que não era mais um regional.

Seu nome mudara para jazz Espia Só.

A ampliação de freguesia foi imediata. Com a formação de regional, seguiriam tocando em ensaios de sociedades carnavalescas e nas serenatas, que logo começariam a rarear – afinal, se começou a ter de plantar olheiros nas esquinas pra avisar quando chegasse a polícia, porque o delegado Henrique de Freitas Lima decidiu mandar prender os boêmios seresteiros. Maldição: em seus tempos áureos, o regional Espia Só chegou a tocar quatro serenatas por semana.

Cine-Theatro Coliseu, em 1910 | Foto: Reprodução
Já como jazz band, as novas possibilidades eram infinitas: bailes e festas nas casas dos ricos e – espanto! – até na Sociedade Germânia, mesmo sendo uma banda 100% negra. Acabou que não davam conta dos convites, vindos da capital e do interior. Agenda lotada: sábados, feriados e soirées domingueiras.

Eram agora 10 músicos: Albino Rosa na flauta e sax alto e Marino dos Santosnos saxes alto e soprano. Marino já era um instrumentista raro: são poucos os saxofonistas que, antes dos anos de 1960, se dedicaram ao ingrato soprano da família. Mesmo no jazz, e nos Estados Unidos, não eram muitos. Sidney Bechet, eventuais momentos de Johnny Hodges e pouco mais. Aqui no Brasil, além de Marino, havia, conhecidos nacionalmente, Ratinho e Luiz Americano.

Severo foi promovidíssimo: do ganzá pra tuba. Herald Alves também, de uma mísera caixa pra uma bateria completa. Além disso, contrataram um trompetista chamado João Luís, o trombonista Oswaldino Peixoto, Armindo Alves (provavelmente irmão de Herald) pro banjo, e Luiz Camaleão Alves (outro irmão?), que fazia vocais e ainda segurava as pontas no ritmo, com pandeiro, afoxé e ganzá… De quebra, um cantor: Leopoldo Carvalho, o popular Marreca.

Pra fechar, atacando de curinga entre banjo, contrabaixo, violão e violino, outra futura estrela do saxofone porto-alegrense: Paulino Mô Nego Mathias. Mais um nome pra guardar. Paulinoe Marino viriam a ser os maiores saxofonistas gaúchos entre os anos 1930 e 50, famosos e respeitados. E Albino ainda completa as novidades mandando trazer um exemplar do rei dos saxes: o portentoso sax tenor. Hoje os naipes são parlamentaristas, mas, na época, Marino, que já tocava alto e soprano, ficou doido. Queria de qualquer jeito ter a honra de ser o primeiro tenorista do Estado. Imagina: aquele era o saxofone que o Pixinguinha tocava!!! Mas a coisa não ia sair barato. Afinal, tinha mais gente de olho no bicho.

Até decidir quem o tocaria, Albino trancou o dito cujo num armário. O que ele não imaginava é que toda noite Paulino Mathias roubava a chave, pegava o sax e o levava pra casa, pra estudar. Quando, 15 dias depois, o chefe avisou que ia fazer um teste pra ver quem estrearia a novidade, o resultado foi um variado festival de guinchos. O troço tava empatado, com todos em segundo lugar, quando Paulino pediu licença. Será que ele podia tentar?

Assombro total: o cara não tocava nenhum sax até então. E tirava um som melhor até que Marino e Albino! Foi aclamação: esse nasceu pra tocar sax tenor…

Voltando aos bailes, a sistemática de então era a seguinte, bastante rígida e minuciosamente disciplinada: fosse quem fosse a atração, tocava uma música… e parava. Aí o pessoal aplaudia. Os músicos então bebiam uma coisinha e tocavam mais umas três ou quatro. Nova pausa. Novos aplausos. Então, mais uma descansadinha pra molhar o bico. Tocavam outras três. Nova parada. Comiam uma coisinha, que ninguém é de ferro, rebatiam com uma dosezinha pro santo e atacavam de novo. E assim a noite ia esquentando. Aos trancos e barrancos.

No meio da semana ainda havia festivais benemerentes, promovidos pelas moçoilas e rapazes da alta sociedade, em cinemas e bailantes. E os membros do Espia Só seguiam se destacando na enxurrada de grupos que vinham em sua cola, tanto pela música quanto pela elegância: vestidos com impecáveis smokings ou, conforme a situação, casacos azul-marinho com botões de madrepérola, gravata borboleta, calças creme de boca meio-sino e uma chinfra sensacional: um imenso lenço creme caindo do bolso do paletó até quase a cintura.

Famosos, doutores em champanhota e acontecendo no Café Society, o grupo vai indo bem até que, em 1928, acontece a primeira baixa. E, putz, logo de sua maior estrela: Marino dos Santos.

Mas seguiram bem arrumados e felizes até 1932, quando cometem um erro clássico: o velho truque da conversa furada de empresário. Um sujeito os contrata para uma excursão nacional, prometendo mundos e fundos… e desaparece no começinho da tour, ainda em Santa Catarina.

Era o fim da primeira jazz band gaúcha.

(Na verdade, parte do grupo já havia desertado, ao não topar a aventura. Pra compensar, agregaram duas cantoras iniciantes e um sapateador cubano (?!?). Conseguem se virar um tempo como o Trio Espia Só, que seguiria, capengueando, Brasil acima: Paulino de volta ao violão, Albino na flauta e o tal sapateador cubano, que teve de virar cantor na marra. Vão pra Santos, tocam em puteiros do porto, passam uns tempos contratados por uma rádio paulista, tentam o Rio, não conseguem nada, embarcam pra Belém do Pará. Lá, ficam uns tempos, e voltam para Porto Alegre, com o rabo entre as pernas.)

A partir daí, vários dos ex-integrantes do Espia Só montariam seus próprios conjuntos. Albino é que nunca mais teria ânimo pra encarar uma liderança e seguiria como um modesto saxofonista tocando pelos dancings e boates da cidade até o final dos anos de 1960, quando se aposenta. Morre, bem velhinho, em 1982.

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Na próxima coluna, a última parte desse capítulo: a explosão das jazz bands na cidade.

Esse é um momento em que começam a rarear gravações. Mas dá pra ouvir o grupo Sulferino (aquele pioneiro em ter sax), no nosso soundcloud.


Extraído do sítio do Sul21

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