27 de outubro de 2011

SANTA MARIA DA BOCA DO MONTE - Carol Bensimon*

Foto: santamaria-rs-brasil.blospot.com
Estou escrevendo este post no ônibus, Santa Maria—Porto Alegre. Duas bananas, uma maçã e meia caixa de bis. Antes disso, eu estava na seguinte situação: área exterior de uma lanchonete, nenhum carro em volta, apenas um pouco de mato no meio do paralelepípedo, acompanhada de três professores de literatura e de uma aluna que disse ter preparado 58 arquivos de powerpoint, entre outras coisas, para que a Semana de Letras da Universidade Federal de Santa Maria se tornasse possível. Meus amigos, foi um belo dia.

Conheci uma professora que cobra João Paulo Cuenca em uma de suas cadeiras. Um dia, deu aula com uma camiseta do Interpol. Tem um cachorro e um marido tatuado (devo dizer que ganhei duas vezes dele na sinuca). Foi ela quem me convidou para que eu falasse com os alunos do curso de Letras, auditório cheio para meus padrões de timidez, onde expus, naquele peculiar ritmo dos sem-retórica, alguma coisa sobre mundo editorial e processo criativo. Em várias oportunidades, consegui fazê-los rir.

Em Santa Maria, há em torno de 260 mil habitantes e exatamente duas livrarias, portanto é preciso fazer um pouco de ginástica para conseguir um livro que não seja psicografado ou coisa que o valha. Existe alguma aventura nisso — ao menos para quem vê de fora, é claro —, o abastecimento em Porto Alegre, a demorada encomenda feita pela internet, um amigo que promete trazer de algum lugar. É como ouvir alguém me contar sobre as dificuldades que teve na juventude envolvendo a audição de tal música, ligava-se para a rádio e pedia-se a música em questão, a fita K7 já preparada no deck, e quando dava certo era uma emoção e tanto, então se podia passar para os amigos, presentear a namorada com uma coletânea feita a duras penas, meses e meses depois. Heróico.

Uma dessas heroínas é a menina dos powerpoints (péssimo ter que relacioná-la com esse softwarezinho irritante, mas quero preservar sua identidade; ela não sabe que escrevo esse texto agora, eu disse que ia falar alguma coisa sobre amor, o amor fica pra próxima). Ela tem um Sinuca embaixo d’água repleto de post-its fluorescentes. Para quem já viu um livro de sua autoria com um bocado de post-its, ou com anotações de todo tipo, deve concordar que essa é uma coisa que faria um homem feito chorar. Acho que eu estava pensando nisso diante do exemplar destrinchado, e tentando não parecer tão grata, quando um homem de óculos surgiu no auditório. A palestra havia terminado há alguns minutos, e a maioria do público já se dispersara. Começou a falar do meu romance, algo sobre focos narrativos, com muita propriedade. Tinha dois DVDs na mão: O cão andaluz e Os famosos e os duendes da morte. Participaria da próxima mesa.

Fomos todos tomar um café. Quer dizer, paramos todos nessa lanchonete que descrevi anteriormente, a mesa meio impregnada de sujeira, a lateral de um hospital no nosso campo de visão, paciente de cadeira de rodas e meias listradas sendo levada para passear, e achamos aquilo meio México, sabe-se lá por quê. Horas e horas naquele lugar falando sobre literatura, pastel engordurado, depois Rio Grande do Sul, a professora ruiva, a promessa de uma viagem, o homem de óculos sabia muita coisa sem ser pedante de maneira nenhuma, deve ser por isso que usava um botton do Nirvana. Tardes assim deviam ter um nome especial.

Será que sou facilmente impressionável? Erroneamente esperançosa? Há algum problema em a vida parecer certa às vezes, mesmo que estejamos compartilhando nossos traumas (ou talvez justamente por isso)? Tudo o que que posso dizer é que foi uma tarde meio Bolaño, do tipo: não sei exatamente o que isso significa, mas acho que diz algo sobre o bizarro da nossa existência.

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008, e no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Ela contribui para o blog com uma coluna quinzenal.

Extraído de: Blog da Companhia das Letras