31 de outubro de 2011

MÁRIO QUINTANA E OS JACARANDÁS DE PORTO ALEGRE

Marco Quintana - Jornal do Comércio
"Eu sempre que parti, fiquei nas gares
Olhando, triste, para mim..."

Mário Quintana, Porto Alegre 21/10/71

Este é um verso inédito de Mário Quintana, manuscrito, com caneta Bic vermelha, no dorso de uma folha de papel com o timbre da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, a mim dedicado, em 1971*.

Estávamos no bar do Elói, no terceiro andar do imponente prédio da Companhia Jornalística Caldas Júnior, Porto Alegre. Mário Quintana havia subido para seu tradicional lanche de fim de tarde: café preto com quindim. Era tão sagrado este ritual que nós, as estagiárias da Folha da Tarde, chamávamos o poeta de "Mário Quindim". Adorávamos compartilhar aquele momento com nosso "colega" de jornal, sempre sorridente e falando baixinho. Quando eu lhe disse que ia embora do Brasil, Quintana me pediu um papel e rabiscou o verso acima com a seguinte dedicatória: "lembrança para a Zélia". Guardo até hoje com orgulho aquela folhinha dobrada, relíquia exclusiva para a estagiária que nada sabia da vida. Só anos depois de ter passado por tantas gares e aeroportos, em tantos países, ao longo de 18 anos de auto-exílio para fugir da ditadura, pude compreender a verdadeira dimensão daquele verso. Ele, que quase nunca viajava e que de estrangeiro só conheceu Buenos Aires, tudo sabia do viajante que deixa sempre um pouco de si em cada partida.

Não poderia deixar de lembrar de Mário Quintana no momento em que se comemora o centenário do poeta gaúcho de Alegrete, um dos maiores do século XX, embora a Academia Brasileira de Letras nunca o tenha reconhecido entre os grandes. Foram muitas as homenagens para aquele que viveu tão discretamente num quarto de hotel em Porto Alegre (Hotel Majestic, hoje Casa de Cultura Mário Quintana) de onde saía diariamente para a redação do Correio do Povo, esquina da rua da Praia com a rua Caldas Júnior. Era o poeta no meio de nós, com toda sua magnitude e simplicidade. Roupas modestas, (não lembro de tê-lo visto de terno a gravata), andar vagaroso, parecia tímido mas jamais recusava uma conversa, embora fosse econômico nas palavras. Morríamos de curiosidade sobre a vida particular do poeta mas não tínhamos coragem de perguntar: se era casado, se tinha filhos, se tinha namorada. Então ficava aquele mistério. Um dia, um velho jornalista do Correio do Povo, amigo de Mário, disse que o poeta só tinha amores platônicos: Greta Garbo e Cecília Meirelles, com direito a fotos no quarto. Mais tarde, mais moderno, ele se apaixonaria também pela jovem Bruna Lombardi, atriz e poeta. Mas nunca o vimos passear de mãos dadas com uma mulher.

Nesta época, Quintana gostava de cigarro e de um traguinho. Depois os médicos o proibiram: "Não por virtude, se pudesse, beberia até hoje", confessou ele ao escritor Rogério Menezes, em 1989. Mas disse que não tinha nada contra os poetas que utilizavam a bebida como fonte de inspiração. "Rimbaud, por exemplo, era um gênio que bebia. Os demais são simplesmente bêbados que escrevem".

Foi no Correio do Povo que Mario Quintana deixou sua marca maior, o "Caderno H", uma espécie de poesia em prosa. Ali, podíamos ler frases como estas: "A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha" ou "Morte: nada de maior; simples passagem de um estado para outro assim como quem se muda do estado do Rio Grande do Sul para Santa Catarina".

Era outubro quando Quintana escreveu "O Viajante", mês dos jacarandás floridos na Praça da Alfândega onde acontece a Feira do Livro de Porto Alegre. Naquele tempo era fácil encontrar por ali poetas e escritores conversando com o povo entre as barracas de livros: Érico Veríssimo, Carlos Nejar, Armindo Trevisan, e claro, o grande Mário Quintana sobre quem Érico escreveu: "Descobri um dia que o Quintana na verdade é um anjo disfarçado de homem. Às vezes, quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora (Ah! como anjo seu nome não é Mário, e sim Malaquias)."

Falo de Quintana situando-o numa época áurea de Porto Alegre. Anos 70. Época de ditadura, sim. Mas época de resistência, de muitos jornais nanicos enfrentando a repressão, como o Coojornal (uma publicação criada por uma cooperativa de jornalistas com centenas de associados), de grandes concertos no Teatro São Pedro, de Vinicius de Moraes e Elis Regina no Teatro Leopoldina (que nem existe mais). A própria Companhia Jornalística Caldas Junior, era uma grande empresa, motivo de orgulho para os gaúchos, com três jornais diários, uma rádio e uma TV.

O Rio Grande do Sul vivia esplendidamente a glória de seus ícones que vimos ruir aos poucos. Primeiro a empresa jornalística Caldas Júnior, agora a Varig. E eu que costumava dizer que os gaúchos cuidavam bem de seus cavalos e de seus aviões... Ledo engano. Lenta agonia. Os poderes públicos, que tanto se beneficiaram das páginas e das asas destes símbolos, pouco ou quase nada fizeram para impedir a ruína. Da Caldas Júnior, falida nos anos 80, sobrou o prédio e um arremedo de jornal com o mesmo título, "Correio do Povo". De tão pálida imitação do grande jornal histórico, o tablóide atual deveria mudar de nome em respeito à memória dos antepassados. Prefiro a morte dos títulos, como a Folha da Manhã e a Folha da Tarde, que formaram uma super geração de jornalistas como Caco Barcellos, Carlos Dornelles e Rosvita Suaressig, entre outros profissionais de renome.

Os tempos são outros. Só a poesia é perene. Tive sorte de ser contemporânea do doce poeta, solitário na vida e solidário na obra. Seus versos tem o frescor da atualidade, a leveza dos pássaros, ("eles passarão, eu passarinho"), a densidade da dor e a marca da esperança ("enquanto há esperança, há vida"). Um dia Mário Quintana escreveu no "Caderno H": "O mais triste das dedicatórias são as datas". Nem sempre. O papelzinho na mão, datado de 21 de outubro de 1971, é a prova mais feliz e inesquecível do encontro da jovem jornalista com o grande poeta.

* Zélia Leal é jornalista e professora da Faculdade de Comunicação da UNB.

(Extraído do Blog do Noblat)