25 de outubro de 2011

DESABAFO - PARTE II - Eduardo Chaves*

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O mais ridículo – na verdade, revoltante – é ver a professora do aluno (ou diretora da instituição) tentando explicar como é que um analfabeto total pode chegar até o oitavo escolar. Ela diz apenas que o aluno “tem tido alguma satisfação com a escola” e cita como prova o fato de que ele ultimamente tem faltado menos do que antes. Ou seja, ela tenta jogar a culpa no próprio aluno, ao apelar para suas faltas… Ela sequer tenta especular por que ele faltou (aparentemente) bastante.

O aluno desmente a afirmação da professora. Diz, taxativamente, que não gosta de frequentar as aulas – talvez seja por isto acabe faltando tanto? Na entrevista, ele esclarece que não faz nada lá: apenas fica sentado.

A escola (aparentemente) não o molesta. O aluno diz que prefere trabalhar a frequentá-la. Pelo jeito, a instituição também preferiria isso, se não fosse ilegal mandá-lo embora por incapacidade ou inapetência para aprender.

Em Portugal, assim como aqui no Brasil, a frequência escolar é obrigatória, pelo menos até uma certa idade. Seus pais poderiam ser punidos caso ele desistisse, por decisão pessoal, abandonar os estudos formais.

A “ideologia escolária” que é hegemônica em Portugal, no Brasil e no mundo não só quer aumentar o tempo de escolaridade obrigatória (hoje de 6 a 14 anos, pretendendo-se exigir também o Ensino Médio), mas quer ainda estender o volume de dias letivos (de 200 para 220) e a “jornada” diária (havendo os proponentes da escola de tempo integral). Além disso, há propostas para que o tempo escolar seja melhor aproveitado com o ensino, reduzindo-se o tempo usado para a gestão da sala de aula, para o lazer e para qualquer outra coisa que não seja ensino.

Estas ideias resolveriam o problema? É evidente que não adiantariam nada, pois o resultado seria algo parecido com o que vemos no caso de Marco, o aluno do filme. Ele detesta a escola, não porque ela lhe exige que aprenda coisas difíceis ou chatas. Ele a detesta porque ali perde o seu tempo, não faz nada além de ficar sentado à sua carteira. Faz bem em detestá-la, porque esse tipo de escola é uma perda total e absoluta de tempo.

Esse vídeo me evocou algumas observações já feitas por autores famosos. Primeiro, uma de Karl Popper, que disse:

“Tem-se dito, e com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas escolas secundárias como de nossas universidades. Não conheço melhor argumento para uma visão otimista da humanidade, nem melhor prova de seu amor indestrutível pela verdade e pela decência, de sua originalidade, de sua teimosia e de sua saúde, do que o fato de que esse devastador sistema educacional não tenha até hoje sido capaz de arruiná-la completamente“.

The Open Society and Its Enemies, Vol. I: The Spell of Plato (Princeton University Press, pág. 136). A tradução e os grifos são meus.

A outra passagem é de Samuel Butler, que disse:

“Fico às vezes imaginando como é que o mal causado pela escola às crianças e jovens não deixa, a maior parte das vezes, marcas mais claramente perceptíveis, e como é que moços e moças conseguem crescer tão sensatos e bons, a despeito das deliberadas tentativas feitas pela escola de entortar ou mesmo interromper o seu desenvolvimento. Alguns, sem dúvida, sofrem danos de tal monta que sentem seus efeitos até o fim da vida. Mas muitos parecem não se deixar afetar pela vida da escola e uns poucos até se saem bem. A razão disso me parece ser que o instinto natural dos jovens se rebela de forma tão absoluta contra a formação escolar que, não importa o que os professores façam, nunca conseguem que seus alunos os levem suficientemente a sério”.

Samuel Butler em Erewhon. Esta passagem é citada por Popper em The Philosophy of Karl Popper, org. por Paul Arthur Schilpp (Open Court, Vol. II, pág. 1174). A tradução e os grifos são meus.

Mas a passagem mais relevante à espécie (como dizem os advogados) nos vem de Leon Tolstói. Embora longa, vale a pena reproduzi-la por inteiro:

“As crianças, em todos os lugares do mundo, são obrigadas, pela força, a frequentar a escola. Na verdade, os pais são obrigados a enviar seus filhos à escola, seja pela severidade da lei, seja porque se lhes prometem vantagens, seja por uma retórica que os ludibria. Fora da escola, as pessoas, em geral, em todos os lugares do mundo, aprendem e estudam por vontade e iniciativa própria e consideram a educação como algo bom. Como é que isso se dá? A necessidade da educação é sentida por todos os homens. As pessoas adoram aprender, amam a educação e a buscam, da mesma forma que amam e buscam o ar que respiram. O governo e a sociedade têm enorme desejo de educar o povo. E, todavia, a despeito do uso da força, da persistência do governo e da sociedade, e de todas tentativas de ludibriar o povo a aceitar a importância da escola, as pessoas do povo constantemente manifestam insatisfação com a educação que lhes é fornecida na escola e só se submetem a ela pela força, quando a escolarização é tornada obrigatória. É possível provar a justeza do método atual de escolaridade compulsória? É difícil descobrir se há métodos melhores, porque até aqui as escolas nunca foram realmente livres. É verdade que no nível mais alto do processo de escolarização – a universidade – se tenta implantar um regime mais livre. Será que, talvez, nos níveis inferiores a escolarização deva ser realmente obrigatória? Será que, talvez, a experiência um dia ainda nos vá provar que escolas de frequência compulsória são boas? Vamos examinar essas escolas, não pela consulta às tabelas estatísticas que nos são fornecidas, mas tentando descobrir o que elas realmente são e fazem e qual o seu real impacto sobre as crianças do povo. Quando voltamos nosso olhar para as escolas de frequência obrigatória, é isto que a realidade nos mostra: as escolas se apresentam às crianças como uma instituição destinada a torturá-las – uma instituição em que elas são privadas de seu principal prazer e necessidade: a movimentação livre; em que obediência e silêncio são exigidos como condição de permanência; em que elas precisam de autorização especial para ‘sair um minutinho’ da sala de aula; em que qualquer ação errada é de pronto punida. Quanto aos resultados da ação da escola sobre as crianças do povo, se atentarmos para a realidade e não para as tabelas estatísticas, somos forçados a concluir: nove décimos da população escolar retiram da escola apenas um conhecimento mecânico da leitura e da escrita; por outro lado, saem da escola com uma aversão tão grande para com os caminhos do conhecimento que foram obrigados a trilhar que nunca mais na vida botam as mãos em um livro. A escola não apenas consegue inculcar nos alunos a aversão para com a educação, ela também os induz a praticar a hipocrisia e a trapaça, em decorrência da posição não-natural em que os coloca. A educação deve ser apenas uma busca de resposta às questões que a vida nos coloca. Mas a escola não só não permite que os alunos ali levantem questões que lhes interessam como se nega a tentar ajudar os alunos a responder as questões que a vida fora da escola os força a confrontar. Ela fica eternamente respondendo às mesmas questões – mas essas são questões que não são levantadas pela mente das crianças. Basta olhar para uma mesma criança, de um lado, em casa e na rua, e, de outro lado, na escola. Em casa e na rua você observa uma criança vivaz, curiosa, com um sorriso nos lábios, explorando e tentando aprender tudo, da mesma forma que explora e busca prazeres, expressando seus pensamentos em suas próprias palavras, com clareza e, frequentemente, com força e eloquência. Na escola, você observa um ser como que aposentado da vida, cansado e com uma expressão de fatiga, tédio, enfado e por vezes terror, repetindo palavras estranhas em uma língua estranha – um ser cuja alma, como num caracol, se esconde dentro da própria casa. Basta comparar essas duas condições em que podemos observar a criança para constatar, sem sombra de dúvida, qual delas é mais vantajosa para o seu desenvolvimento. A natureza compulsória da frequência à escola impede que a criança ali se eduque.”

Leon Tolstói, “Sobre Educação Popular”, em Artigos Pedagógicos, de 1862, traduzido do russo para o inglês por Leo Wiener. Citado apud Daniel Greenberg em Announcing a New School: A Personal Account of the Beginnings of the Sudbury Valley School (The Sudbury Valley School Press, pág. 175). A tradução e os grifos são meus.

Forte, não? Mas será que quem vê o vídeo tem condições de argumentar que há alguma coisa errada naquilo que diz Tolstói?

Alguma coisa está seriamente errada, sim, mas não com o que Tolstói diz, nem necessariamente com o menino do vídeo, e nem só com a escola, mas com toda uma sociedade que valoriza a escolaridade independentemente da qualidade da aprendizagem proporcionada (se é que a escola proporciona alguma aprendizagem importante), e que acha bom aplicar a crianças inocentes, que não cometeram nenhum crime, uma sentença de prisão de nove a doze anos em que um rapaz como esse não aprende nada. A obrigatoriedade da frequência a uma escola ruim faz com que o aluno deixe de acreditar na importância e no valor da aprendizagem e da educação. É esse o principal recado de Tolstói.

Vivemos, como disse, sob o jugo de uma “ideologia escolária”, que promove a escolarização, quando deveríamos estar promovendo a aprendizagem ativa, interativa, significativa e, por conseguinte, a educação incorporada (embedded) na vida. Vale dizer: uma aprendizagem e uma educação que construímos no lazer, enquanto brincamos, e no trabalho, enquanto fazemos alguma coisa útil. No gueto escolar típico nem se brinca, nem se trabalha. Por isso, não se aprende grandes coisas.

Como já disse em artigo anterior, Cristovam Buarque, que me parece uma pessoa honesta e bem intencionada, uma vez disse, quando Ministro da Educação, que “qualquer escola é melhor do que nenhuma escola”. Para ser franco e sincero, nunca ouvi uma bobagem pedagógica tão grande. Gostaria de conhecer sua resposta sobre por que os oito anos desperdiçados por Marco na escola representam algo melhor do que oito anos em que ele brincasse e curtisse a vida, ou trabalhasse e ganhasse algum dinheiro para si e para seus pais (fatalmente aprendendo alguma coisa útil, seja no brinquedo, seja no trabalho).

Repito: escola ruim, além de representar desperdício de tempo e de dinheiro, causa um mal ainda pior: convence as pessoas de que a aprendizagem e a educação não valem nada, de nada servem para o seu desenvolvimento, não fazem diferença em sua vida.

Quando aplicada a uma escola ruim, a “ideologia escolária” prega um verdadeiro conto do vigário, do qual são especialmente vítimas os pobres. Nunca encontrei alguém aqui no Brasil que fosse contra a obrigatoriedade da escola para quem está na faixa etária de 6 a 14 anos.

Mas, como Tolstói deixa claro, é mentira que a mera frequência à escola, ainda que ruim, vá melhorar a vida dos pobres alunos… A escola ruim, a escola em que não se aprende, não muda a vida de ninguém. Só entedia e revolta os jovens. Só os leva a crer que a aprendizagem e a educação, tal qual a escola, também não servem de nada. Neste estágio, passam a crer em outra mentira, porque a aprendizagem e a educação são úteis – na verdade, são indispensáveis – para o desenvolvimento humano, nos planos pessoal, social e profissional. O problema é uma escola que não educa, em que não se aprende, em que o potencial dos alunos não se desenvolve.


Eduardo Chaves é pHD em Filosofia, consultor de várias instituições educacionais e colaborador do Blog da Editora Ática.

Extraído de: Blog da Editora Ática