23 de outubro de 2011

ARGENTINA: LIVROS QUE SÃO O PAÍS - Eric Nepomuceno




Em Buenos Aires, num dos blocos que integram o soturno e solene conjunto onde um dia esteve a Escola de Mecânica da Armada, a ESMA, o mais notório centro de torturas da ditadura argentina, hoje funciona o Centro Cultural da Memória Haroldo Conti. O conjunto de edifícios cor de cinza, todos mais ou menos da mesma altura – três andares de pé direito alto –, cercados por jardins e bosques bem cuidados, tem o ar lúgubre e marca um tempo de terror. 

Lá dentro passaram opositores à ditadura militar, de ativistas de organizações armadas a estudantes desarmados, de líderes sindicais a profissionais liberais, de jovens a velhos, e ali muitas mulheres sequestradas tiveram bebês que sumiram, doados a famílias de policiais e militares. Dali saíram dezenas de presos levados para os vôos da morte: dopados, eram enfiados em aviões e atirados vivos no mar ou no rio da Prata. 

Dos pouco mais de cinco mil presos que passaram pela ESMA, os sobreviventes não somam 200. 

Depois da chegada de Nestor Kirchner à presidência, e do advogado Eduardo Luís Duhalde à secretaria nacional de Direitos Humanos, em 2003, o conjunto de blocos tornou-se um lugar de preservação da memória, e também de reivindicação sem tréguas. Não à toa o Centro Cultural da Memória leva o nome de Haroldo Conti, um grande escritor, que foi das primeiras vítimas – sequestrado, destroçado – da ditadura inaugurada pelo general Jorge Rafael Videla, o almirante Emilio Massera e o brigadeiro Orlando Agosti, no nefasto março de 1976. 

Há poucos dias foi aberta nesse Centro Cultural da Memória a exposição ‘200 anos, 200 livros’. Um grupo de 23 intelectuais, de diversas tendências e diferentes campos de ação, elaborou a lista dos livros que, no seu entender, desvendam o país. A exposição faz parte dos festejos de 200 anos da independência argentina. Fica aberta até o dia 12 de janeiro de 2012. 

É claro que, como em toda seleção, a lista provoca alguma polêmica. Críticos e escritores estranharam a ausência de escritores como Tomás Eloy Martínez e José Bianco, ou de poetas como Alberto Girri e Miguel Angel Bustos, para citar quatro exemplos. Os ausentes, porém, não ofuscam os presentes. Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Juan Gelman, Hector Tizón, David Viñas, Rodolfo Walsh, Roberto Arlt, Horacio Quiroga, Juan José Saer, Manuel Puig, Haroldo Conti, Osvaldo Soriano, Daniel Moyano e Ricardo Piglia estão ao lado de outros escritores, poetas, historiadores, jornalistas, filósofos, autores de histórias em quadrinhos, e – como não? – Evita e Juan Domingo Perón. 

A mostra tem uma estrutura curiosa: foram desenhadas sete linhas ferroviárias, atravessadas por um rio. Cada linha traz o nome de um autor: David Viñas, Ricardo Piglia, Jorge Luis Borges, Ezequiel Martínez Estrada, Rodolfo Walsh, Nestor Perlongher, Raúl Scalabrini Ortiz. Algumas estações levam a outras. O rio que as atravessa e une é Haroldo Conti. 

Entre os 200 livros da mostra, e que desvendam a história da Argentina, está o relatório da comissão que investigou o terrorismo de Estado, o ‘Nunca más’. Entre os autores há dois que apoiaram Videla em março de 1976, Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato. Borges, aliás, apoiou todos os golpes militares da Argentina, a começar pelo que derrubou Perón em 1955. Internacionalista, louvou o general Augusto Pinochet no Chile. Já Sábato acabou voltando atrás, e se juntou aos que condenaram a ditadura. 

Mas estão também os que viveram em carne própria o terrorismo de Estado. Hector Tizón, Daniel Moyano e Osvaldo Soriano, por exemplo, amargaram anos de exílio. Mesmo destino teve David Viñas, porém mais bárbaro: antes de ele ir embora mataram sua filha e sequestraram sua neta recém-nascida. Juan Gelman soube, no exílio, do sequestro de seu filho e de sua nora grávida. Ela foi levada para o Uruguai, numa operação do Plano Condor, onde teve, na prisão, uma menina que foi entregue a um chefe de polícia. Quase duas décadas depois, o poeta recuperou os restos do filho assassinado. Da nora, nunca mais nada. Gelman só recuperou a neta 24 anos mais tarde. 

Há três nomes que reúnem toda a importância de realizar essa mostra no lugar onde ela está, marca máxima da barbárie. 

Ali, na ESMA, foi visto pela última vez o corpo morto de Rodolfo Walsh, estrela luminosa do jornalismo e da literatura argentina. O poeta Francisco Urondo escapou do que estaria à sua espera naquelas masmorras, porque foi morto em Mendoza. Haroldo Conti foi destroçado em outro centro de tortura, não muito longe dali 

De alguma forma, o reencontro dos três simboliza uma história que ninguém conseguiu nem consegue calar. A história do país. 


Extraído de: Sítio Carta Maior